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Guilherme Ary Plonski, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) e do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP

 

 

Toponímia uspiana

O professor Flávio Fava de Moraes foi o primeiro Reitor com quem tive o prazer de trabalhar diretamente, a partir de fevereiro de 1994, quando assumi a coordenação da Coordenadoria Executiva de Cooperação Universitária e de Atividades Especiais (Cecae), órgão recente, vinculado à Reitoria. Afável, acolhedor e sereno, surpreendia-nos frequentemente com observações espirituosas e, ao mesmo tempo, ilustradas.

Uma delas, perto do final de sua gestão, é a afirmação de que não gostaria de ser homenageado pela nominação de uma das vias da Cidade Universitária, pois elas carregavam os nomes de reitores mortos…

De fato, ressalvadas algumas denominações pictóricas (como “Praça do Relógio” e “Rua do Matão”), as avenidas e praças recebem tipicamente os nomes de reitores falecidos que exerceram o mandato antes da ocupação da Cidade Universitária “Armando de Salles Oliveira” pela USP. Esta ocorre a partir da segunda metade da década de 1950.

Cabe observar que o Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo (IPT) é o primeiro ocupante da Cidade Universitária, para onde começou a se mudar em 1937. A construção do prédio Adriano Marchini, seu icônico edifício-sede, inicia em 1947 e conclui em 1953. A USP chega mais tarde; os relatos verbais indicam que os primeiros servidores da USP a se instalarem ali utilizavam como local de almoço o refeitório do IPT, então o único disponível no campus.

Há duas exceções na toponímia uspiana. Uma é a Avenida Orlando Marques de Paiva, em que se situa a Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ). A sua gestão reitoral transcorreu no período 1973-1977, em que a Cidade Universitária já estava intensamente ocupada. D’ailleurs, o homenageado foi docente e diretor da FMVZ.

A outra exceção é a praça em frente ao portão de entrada do IPT. Ela reverencia o engenheiro-arquiteto paulistano Francisco de Paula Ramos de Azevedo, responsável por projetos icônicos como o Teatro Municipal, o Palácio da Justiça e o Liceu de Artes e Ofícios (atual Pinacoteca). Foi, ademais, um dos fundadores da Escola Politécnica (Poli), incorporada à USP em 1934. Diferentemente dos demais nominados nas vias do campus, ele não foi reitor da USP, nem poderia ter sido, pois faleceu antes da criação da Universidade.

O visível monumento de 22 toneladas e 25 metros de altura, que estava originalmente instalado na avenida Tiradentes, em frente ao Liceu e perto das antigas instalações da Poli, teve que ser desmontado para a construção da linha pioneira do Metrô. Como sói acontecer nestas plagas, seus pedaços ficaram encostados por alguns anos num barracão da Pinacoteca, até que fosse decidido o que fazer. Num ato de justiça poética, a obra, que havia sido inaugurada no ano de criação da USP, acabou acompanhando a mudança da Poli e está, remontada, na Cidade Universitária.

A “minha” via

No momento da escrita deste depoimento, tenho 47 anos de atuação como servidor docente da Universidade. Todos os envolvimentos transcorrem nas imediações de uma única via, a Avenida Professor Luciano Gualberto, que foi reitor no biênio 1950-1951. Seguindo a numeração crescente da via, minhas atividades ocorrem em seis locais:

1) O prédio da antiga “Nova Reitoria”, onde se localiza o Instituto de Estudos Avançados, do qual sou professor sênior, após ser conselheiro, vice-diretor e diretor. Ali também atuei na implementação da Escola Técnica e de Gestão da USP (Escola USP), da qual fui o primeiro coordenador;

2) O prédio atual da Reitoria, onde coordenei a Cecae (na ocasião o prédio era denominado “Antiga Reitoria”);

3) O prédio do Centro de Inovação da USP (InovaUSP), do qual fui vice-coordenador em duas gestões reitorais;

4) O prédio da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA), onde sou professor-sênior, após décadas de docência ativa no Departamento de Administração. Fui também coordenador científico do Núcleo de Política e Gestão da USP (PGT), ali sediado;

5) O “prédio do Biênio” da Escola Politécnica, onde se localiza o Departamento de Engenharia de Produção, do qual fui docente ativo por várias décadas; e

6) O complexo do IPT, do qual fui Diretor Superintendente por nomeação do Governador. Embora legalmente afastado, continuei a ministrar aulas na Poli e na FEA, assim como a orientar discípulos.

Mas quem foi Luciano Gualberto?

Curiosamente, há também uma via homônima à do meu convívio cotidiano no campus. É a rua Professor Luciano Gualberto no bairro do Jardim Morumbi. O logradouro, originalmente denominado “Rua 3”, foi oficializado pelo Prefeito José Vicente de Faria Lima pelo Decreto nº 6.512, de 17 de junho de 1966. Ali se determina que na placa deve constar o dizer “Médico Emérito”.

O Dicionário de Ruas, plataforma do Arquivo Histórico Municipal que reúne informações sobre os nomes das vias da cidade de São Paulo, se estende sobre a sua biografia, aqui transcrita com pequenas correções formais e separação de parágrafos para mais fácil leitura:

O professor Luciano Gualberto, nasceu em 14 de janeiro de 1883, em Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro. Fez seus primeiros estudos nos Colégios São Vicente de Paulo e São Luís.

Diplomou-se pela Faculdade de Medicina em 1907. Viajou para a Europa, onde permaneceu por muito tempo estudando com Seguem, Marion, Victor Pauchet e Layte Pozzi, além de ter sido assistente de professores famosos em Roma e Florença.

Vindo para São Paulo, foi assistente dos professores Arnaldo Vieira de Carvalho, Alves de Lima e Alfonso Bovero. Após provas brilhantes, alcançou em primeiro lugar a cátedra de Ginecologia da Faculdade de Medicina. Foi professor de anatomia, médico-cirurgião da clínica urológica.

Ocupou importantes cargos administrativos no setor universitário, entre os quais o de membro do Conselho Universitário, chefe do serviço da Santa Casa de Misericórdia e Reitor da Universidade de São Paulo. Grande cirurgião, foi cirurgião-chefe do Hospital das Clínicas, Hospital Municipal, Pronto Socorro da Cruz Vermelha, Hospital da Força Pública, e nos hospitais da frente de combate durante a grande guerra.

Membro de várias academias e sociedades de medicina, possuía diversas condecorações e títulos honoríficos. Político militante, foi vereador, deputado estadual, vice-prefeito e prefeito interino da Capital paulista, além de presidente da Viação Aérea São Paulo S.A. – VASP.

Como escritor, deixou diversos romances e volumes de poesias, tais como: A Sociedade Moderna; O homem que perdeu a Fé; Gondola Azul e Torre de Babel. Cientista, escreveu trabalhos de grande valor. Faleceu em 21 de setembro de 1959.

A sua produção literária o torna membro da Academia Paulista de Letras de 1941 até seu falecimento, em 1959. Foi o segundo ocupante da cadeira no. 29, cujo patrono é Paulo Eiró. Anos mais tarde, a cadeira passa a ser ocupada por um notável colega da FEA, professor José Pastore, do Departamento de Economia, a quem por vezes encontro também num dos concertos apresentados na Sala São Paulo.

Em seu discurso de posse ele faz uma importante menção à trajetória de Luciano Gualberto, reproduzida a seguir:

Valdomiro Silveira foi sucedido por Luciano Gualberto, um extraordinário médico e administrador público que, dentre os vários cargos que ocupou, destaco o de Reitor da Universidade de São Paulo.

Mas Gualberto fora colaborador de Arnaldo Vieira de Carvalho e Alfonso Bovero na criação da Faculdade de Medicina da mesma Universidade. Especializou-se em urologia, tendo escrito e traduzido inúmeras obras nesse campo.

Além de sua competência científica, Luciano Gualberto foi um agradável professor, que entremeava suas aulas com estórias de muito calor humano. De fato, o bom professor não é aquele que só implanta fatos na cabeça dos alunos, mas o que provoca neles a curiosidade, a imaginação e a criatividade.

A veia social do grande mestre despertou cedo. Sua tese de doutoramento, aprovada em 1909, foi sobre “A Proteção do Operário em Casos de Acidentes do Trabalho”. Inspirado nessa obra, o governo editou um Decreto-Lei (DL 3.724) que tratava da proteção aos acidentados. Mas isso foi em 1919 – dez anos depois. Como se vê, a demora em decidir não é invenção dos governos de hoje.

Os acidentes da época eram devastadores devido à rudeza do ferramental da agricultura, ao fogo errático das forjarias, aos perigosos andaimes da construção civil e tantos outros fatores de risco. A devastação permaneceu por vários anos. Não muito distante, ao longo da década de 90, 39 mil brasileiros que saíram de casa para trabalhar, não voltaram. Morreram trabalhando: 39 mil em dez anos!

Esses são os casos notificados. Até hoje, a grande maioria dos acidentes de trabalho não é notificada. Os estragos são brutais para os trabalhadores, as famílias e a economia do país. Pesquisa recente mostrou que os acidentes do trabalho custam ao Brasil 25 bilhões de reais por ano! São 100 bilhões de reais a cada quatro anos (11). Uma fábula de recursos! Sem contar a dor, o sofrimento e as vidas, que, evidentemente, não têm preço.

Nos últimos tempos, os números melhoraram. Eficiência? Não, infelizmente. É irônico dizer que a redução do número de acidentes resultou, em grande parte, de uma lei que desestimulou a notificação por parte das empresas (Lei 6.367 de 1976). Um absurdo.

No Brasil é assim. Quando a febre está muito alta, troca-se o termômetro… Na inflação, dá-se o mesmo. Quando o preço do chuchu dispara, tira-se o chuchu da lista do custo de vida. E a inflação baixa. É assim que os tecnocratas demonstram a sua genial criatividade…

Além de médico e professor, Luciano Gualberto foi um homem de vida pública e de ação enérgica, como era o seu jeito de ser – sempre falante, direto e contundente.

Foi vereador em três legislaturas, deputado estadual, vice-prefeito, prefeito interino e secretário da saúde e da educação.

Saúde e educação foram suas grandes paixões. Perdão. Não posso omitir a sua vocação de poeta – poeta das horas vagas, como se auto-definia. Ele costumava brincar, dizendo que suas poesias saíam sempre de “pé quebrado” porque, como urologista, não dominava as ferramentas dos ortopedistas…

Pura modéstia. As criações literárias de Luciano Gualberto foram simples, mas retrataram seu diuturno convívio com o sofrimento humano nas clínicas, nos centros de saúde e nos hospitais, como se nota nos seguintes versos:

Eu conheço o sabor da lágrima e do riso,
Tenho rido e chorado e, assim, dessa maneira,
Ora tendo o caminho eriçado, ora liso,
Senti as sensações de uma existência inteira.

Chamo a atenção a aspectos da vida de Luciano Gualberto que o professor Pastore destaca. Eles enfatizam questões centrais também da trajetória do homenageador, um sociólogo internacionalmente reconhecido pelos seus estudos e atuação como intelectual público no campo da economia do trabalho e das relações do trabalho.

Afinidades acadêmicas

Não tive oportunidade de interagir com o professor Luciano, pois tinha apenas 11 anos quando do seu passamento. Contudo, identifico algumas afinidades, além naturalmente do fato de termos ambos encontrado na Universidade de São Paulo o ambiente ideal para desenvolvimento pessoal e contribuição à sociedade ampla. Valho-me da resenha feita pelo professor Pastore, da qual extraio alguns trechos.

Sobre a função do professor universitário: “Luciano Gualberto foi um agradável professor, que entremeava suas aulas com estórias de muito calor humano. De fato, o bom professor não é aquele que só implanta fatos na cabeça dos alunos, mas o que provoca neles a curiosidade, a imaginação e a criatividade”.

Se sou ou não bom professor e orientador deixo por conta dos/as que tive o privilégio de ter como alunos/as e orientado/as. Mas, como Luciano, entremeio as aulas com estórias. Em algumas busco expor os estudantes aos contextos relevantes em que teorias foram propostas, técnicas foram desenvolvidas e inovações emergiram. Destaco sempre o “fator Quem”: por exemplo, qual foi a trajetória pessoal e a jornada profissional de Jorge Sábato que o levaram a propor o modelo trino pioneiro para geração de desenvolvimento econômico e social a partir da Ciência, três décadas antes da hoje dominante Hélice Tríplice. O importante no processo de ensino-aprendizagem é integrar logos, páthos e ethos.

Sobre a responsabilidade social do professor universitário: “A veia social do grande mestre despertou cedo. Sua tese de doutoramento, aprovada em 1909, foi sobre ‘A Proteção do Operário em Casos de Acidentes do Trabalho’”.

Cedo também entendi a multidimensionalidade do papel do engenheiro. Tendo declinado do convite para ser docente da Poli logo após me formar, com o algo ingênuo argumento de que “antes de ser professor de engenharia precisava ser engenheiro”, fui admitido numa das principais empresas de engenharia consultiva do Brasil. Coincidindo com Luciano, o meu primeiro texto publicado mostrava o tamanho da tragédia dos acidentes do trabalho e doenças profissionais no Brasil no começo dos anos 1970, tema não muito apreciado no regime autoritário de então.

Sobre a translação do conhecimento acadêmico em políticas públicas: “Inspirado nessa obra, o governo editou um Decreto-Lei (DL 3.724) que tratava da proteção aos acidentados.”.

Não tenho a ilusão de que o modesto artigo de engenheiro recém-formado tenha impulsionado uma política pública em defesa dos trabalhadores. Mas desde sempre considerei a frutificação do conhecimento gerado na universidade em inovações transformadoras um dos eixos direcionadores do meu papel de gestor ao longo da jornada uspiana, especialmente na coordenação da Cecae e do PGT, assim como na direção do IEA. E, ça va sans dire, também quando fui dirigente do IPT, instituição particularmente bem-posicionada para esse mister. Um exemplo concreto é a criação pelo Instituto do “Espaço Tecnologia” na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo.

Sobre a demora para implementação de políticas públicas no Brasil: “Mas isso foi em 1919 – dez anos depois. Como se vê, a demora em decidir não é invenção dos governos de hoje”.

Esposo idêntico assombro. Ele é objeto de um dos capítulos do livro “Vencerás pela Ciência, Transformaremos pela Inovação”, uma das obras alusivas aos 90 anos da USP a ser publicada pela Edusp em 2025.

E agora?

A Universidade é uma construção coletiva intergeracional. Assim, estendo a evidenciação das afinidades acadêmicas ao professor José Pastore, já mencionado acima. Após fazer as homenagens de praxe aos ocupantes anteriores da cadeira no. 29, inclusive Luciano Gualberto, ele expõe um pouquinho da sua pessoa.

Sobre a decisão de ser professor-sênior: “Espero que o meu atrevimento seja compreendido como um gesto de quem deseja aprender. Aliás, eu estava ainda aprendendo quando dei a última aula na Universidade de São Paulo. Não me conformei com a aposentadoria. Voltei a lecionar e a ouvir os alunos. Meus colegas apoiaram”.

Fui beneficiado pelo projeto do preclaro senador José Serra, que estende os efeitos da chamada PEC da Bengala a todos os servidores públicos da União, estados e municípios. Em decorrência, a idade da aposentadoria obrigatória no funcionalismo público passou a ser 75 anos e não mais 70, assim como aconteceu com os ministros do Supremo Tribunal Federal. Poderia me aposentar bem antes, por estar na pitoresca condição conhecida no jargão acadêmico como “pé na cova”. Em termos menos fúnebres, havia reunido todas as condições para me aposentar com percepção integral (e paridade) de vencimentos.

Não tive dúvida em continuar com a quádrupla vinculação (Poli, FEA, IEA e InovaUSP). E ganhei um ano de bônus, por ser diretor do IEA selecionado num processo eletivo, podendo cumprir o mandato até o final.

Quando chegou a hora inapelável de término do serviço ativo, tive a ventura de, como Pastore, receber o apoio carinhoso de colegas e de dirigentes para me tornar professor-sênior. Como alertado pelo solícito colega do Departamento de Recursos Humanos, com o efeito colateral de prejuízo de vencimentos, pela perda do adicional de permanência.

Sobre o futuro na Universidade: “Eles têm razão. O ser humano que para de aprender vira obsoleto, tenha ele 20, 30, 40 ou 50 anos. Quero seguir o exemplo deste grande brasileiro, Miguel Reale, que, com 93 anos, não desiste de aprender e, por isso, não para de ensinar. É esta sede de aprender e este impulso de ensinar que me levaram a escolher Vossa Excelência, caro Professor, para me receber nesta Academia. Este é, sem dúvida, um dos momentos mais felizes de minha vida”.

Imbuído da mesma ideia de lifelong learning e inspirado no lema do saudoso doutor José Mindlin (“Não faço nada sem alegria”), permaneço professor da USP. Espero gozar de saúde de corpo e mente para continuar a aprender e contribuir à USP e, por meio dela, ajudar a reparar o mundo, seguindo a diretriz judaica de tikun olam que me acompanha desde a infância.

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