A maleta em perigo – recordações de tempos passados

Arlete Orlando Cavaliere Ruesch, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 

 

– Boa noite, moça! Por gentileza, seus documentos. Estacione mais ao lado, por favor.
– Ali? Algum problema?
– Rotina, senhorita. Ordens superiores. Temos que verificar os veículos na saída da Cidade Universitária. Encoste e saia do carro, por favor.
– Está bem.
-Temos que revistar o seu veículo. Com licença, aquela maleta ali… vamos abri-la, por gentileza.
– Como assim? Abrir? Para que?
– Ordens superiores, mocinha.
– O que deseja exatamente? Por acaso aquelas pastas coloridas no banco traseiro?
– Não senhora. Aquela maleta de couro embaixo do banco traseiro.
– São materiais e livros. Tem muita coisa lá dentro! Os senhores querem olhar tudo que está lá?
– Ordens superiores! Abra! Por gentileza!

Quando fez 18 anos ganhou do pai um Ford vermelho. Um carrinho usado, um pouco vetusto, é verdade, mas com procedência conhecida: pertencera a um advogado, amigo da família.

Precinho bom! De amigo mesmo! E a promessa estava cumprida. Promessa é dívida! (dizia o pai). Se a menina entrasse logo de primeira na Faculdade de Letras e, ainda por cima, numa instituição gratuita, receberia seu próprio meio de condução para se deslocar todas as noites à Cidade Universitária. A distância era grande e precisaria, no mínimo, dois ônibus para lá chegar, e depois (o pior! – dizia a mãe), voltar sozinha tarde da noite de ônibus. Ou então (o pior! – dizia o pai), em ônibus lotados de todo tipo de gente. Além do vestibular, a mocinha tinha passado também pelas provas para ter a sua carta de motorista. E fora aprovada em tudo! E com louvor! (filhinha inteligente! – diziam os pais).

Por isso mesmo, também ganhara da mãe uma pequena mala – a tal maleta retangular de couro cor de canela, guarnecida com fecho metálico em forma de cadeado. O artefato se abria com um segredo: uma sequência numérica, um código logo inventado com secreto regozijo infantil no primeiro dia de aula. Tudo em perfeita segurança! Livros, cadernos, pastas, lápis e canetas, e todo o necessário para a excitante vida universitária que mal começara.

Os pais bem que advertiram. Tempos difíceis! Cuidado com as amizades! Veja lá com quem fala! Não dê caronas a desconhecidos! Jamais leve, sem antes ler, jornais, papéis, textos de quem quer que seja dentro da maleta! Tempos tenebrosos! Adversos à moral e aos bons costumes!

Mas que maus costumes poderiam ameaçá-la? Ela não entendia muito bem toda aquela barulheira. Estava excitada com aquele ambiente. Um tanto confuso, é verdade! Mas, sem dúvida, fascinante!

Com frequência, recebia convocações no campus para participar de assembleias secretas. Curiosa, resolvia ir, sem dizer nada à família, é claro! Enfiava-se em salas lotadas. Estudantes, palestrantes, artistas, gente do centro acadêmico. Muita gente! Lá ia ela para a grande sala nos fundos dos corredores, ou para o subsolo ou, então, para a sala de projeção de filmes. Assistia a tudo! Principalmente a filmes programados às 6as.feiras à noite. Filmes proibidos, diziam. Alguns mudos, outros legendados, todos interessantes! Desconhecidos para ela. Inquietantes…

Queria compreender melhor os discursos, os panfletos, os manifestos inflamados. Textos que aos poucos iam abarrotando a sua maleta secreta, fechada a quatro chaves! Ou melhor, a quatro números! Os pais começaram a comentar que a tal maleta engordava, engordava e chegava a estufar. “Muitas apostilas, mamãe! E os livros, então! São tão grandes, pesados!” A mãe escutava. “Tome
sempre muito cuidado com essa gente lá da universidade! É tudo muito perigoso hoje em dia! É uma gente subversiva!”

Mas ela não dava lá muita bola para a mãe. E, por cautela, não se desgrudava nem por um minuto do precioso acessório escolar. Dormia com a maleta debaixo do colchão, grudada ao colo na sala de aula, debaixo do braço na cantina. Devorava o sanduíche de modo bizarro por causa disso: o corpo um tanto deformado pendia para esquerda, a mão esquerda equilibrava a gostosura, enquanto a outra, solidária ao braço direito, apertava firme para que a coisa não escorregasse e despencasse no chão. A maleta pesava do lado direito! Que sufoco! No pátio, preferia levá-la a tiracolo, na biblioteca pousava-a sobre a mesa de estudo, e quando se dirigia ao balcão para apanhar o material solicitado, lá ia também a tal maleta junto com ela. E no toillette, então! Pousava a maleta no chão ao lado do vaso sanitário, vigiando bem os passos do lado de fora por debaixo da porta. Quem sabe alguma mão sorrateira pudesse se infiltrar?!! Já pensou surrupiarem a dita-cuja?!! Mas logo depois, são e salvo, voltava a passear o mimo pelos corredores da faculdade. “Era mesmo uma maleta e tanto!”, explicava aos colegas. “Além das alças curtas, vejam só, tem também esta alça comprida adicional para a opção tiracolo! E o fecho, então! Impossível abrir. Há um segredo indecifrável! Ah, indecifrável! Tem que saber o número do código!”

Aos poucos os colegas passaram a cumprimentá-la em tom de galhofa: “Lá vem a moça da maleta”. Tão evidente era o seu apego por aquela coisa! Criaram um epíteto, uma alcunha, um apodo:
“A moça da maleta de couro”. Ela até que apreciava. A maleta era mesmo um primor! Companhia inseparável.

E os papéis iam se acumulando lá dentro. Eram tantos! Proibidos? Talvez. Preciosos? Certamente! Ela os lia – todos! Não em casa, é obvio! Mas às escondidas, depois das assembleias, nos intervalos de aulas, ou durante as discussões secretas. E tudo, aos poucos, começava a fazer sentido! Que gente inteligente! Inteligente mesmo! Chegou até mesmo a participar de passeatas – com a maleta a tiracolo! “É tudo muito perigoso!” dizia a mãe. “É tudo muito entusiasmante!”, ela dizia. Mas se assustou, é verdade, ao saber que alguns de seus colegas tinham desaparecido da noite para o dia. E que alguns de seus professores tinham sido presos e interrogados.

Chovia muito naquela noite de 6ª.feira. Já era quase meia-noite. Tinha acabado de assistir ao filme “Encouraçado Potenkin”, de Eisenstein, e ficara até o final das discussões, que se seguiram à projeção.

Ficou inquieta quando viu os faroletes dos policiais apontarem para o seu carro na saída do campus. E começou a tremer um pouco. Encostou o carro no lugar indicado. Estava escuro. Saiu do
carro. E a voz da mãe martelou na sua cabeça. “É tudo muito perigoso! Tome muito cuidado”!

– Posso abrir, se os senhores quiserem, mas está um pouco difícil.
– Como difícil? Abra a maleta!
– É que tem um segredo no fecho.
– Abra! Já! A senhorita deve saber o segredo, não?
-Estou tentando. Não consigo! Emperrou!
– Mocinha! Não estamos brincando! Abra a mala!
– Os números não estão funcionando. Não consigo abrir! O segredo do fecho, os senhores entendem? Não abre! Tem um código! Números! O segredo do fecho! Não está batendo! Não sei o que se passa!!
– Vamos ter que ficar com a sua mala, moça! Temos que revistar!
– Por favor! Não estou me lembrando do código! Acho que é isso! Um minutinho, por favor! Será que esqueci?
– Não chore! Vamos abrir a sua mala de um modo ou de outro.
– Mas são apenas apostilas, livros, materiais de aula! Dei…xem..-me ir, por fa…vor…
– Não adianta chorar, mocinha! Vamos ter que ficar com sua mala.
– Mas não posso ficar sem o meu ma…terial de estu…do, vocês compreendem?! Um mo…mentinho, por fa..vor..! Vou ten…tar de no…vo.
– Estamos esperando.
– Não abre! Não a…bre! O que que…rem ver aqui? São li…vros, apos…tilas, pa…péis.. sou estu..dante… não estão ven…do?
– Menina, largue essa mala! Não adianta se agarrar a ela! Vamos ter que ficar com ela! Largue a mala! Me dê a mala!
– Vocês estão machu….can…do o meu braço! Não vou lar..gar! A mala é mi…nha! Por fa…vor… deixem- me ir…são apenas li…vros! Li…vros de um cur…so de língua estran…geira… um
curso áudio-visual de lín…gua. Nada mais! O fecho que…brou! Só pode ser isso!
– Então, a mala fica!
– Senho…res! Ganhei essa ma…le…tinha de minha mãe no iní…cio do ano. Passei no vesti…bular, entendem? Um prê…mio, entendem? De mi…nha mãe, entendem? Tenham pie…dade! Deixem-me ir! Por fa…vor!!!!
– A nossa paciência está se esgotando, menina! Já disse que a mala fica!
– Nãoooooooooooo! Vou morreeeeeeeeeeer! Entendeeeeeeeeeem? Morreeeeeeeeeer!
– Saia do chão, mocinha! Tenha calma! O que é isso agora? O que está fazendo? Levante-se! Por causa dessa bendita maleta?
– Minhaaaaaaa malaaaaaaaaaaa!!
– Já chega! Ela é louca, capitão! Está se contorcendo toda! Epilepsia?!
– Nãoooooooooooo! Minhaaaaaa maletaaaaaa!! Um presenteeeeeee! De minha mãeeeeeeeeee!!!!
– Deixe-a ir. Tire-a daqui! Está chamando muito a atenção. Há uma fila enorme de carros à espera para inspeção!
– Moça, levante-se! Volte para o seu carro e dê o fora! Jáaaaaaaaaaa! Agoraaaaaaaaaaaa!!! Com a sua malaaaaaaaaaa! Andaaaaaa! Desapareçaaaaaa!

A menina suspirou fundo. Ufa! Pensou ela já com o carro em movimento. Pernas a tremer. Deu certo! Ainda bem que não abriram… e não viram o tal livro de língua estrangeira: Rússkii Iazýk dliá
vsekh (Língua Russa para todos)! Escapei por pouco! Tempos difíceis! Tenebrosos ! (dizia a mãe).

E o carrinho vermelho cruzou cambaleante os portões do campus, e desapareceu rapidinho na escuridão da alameda central arborizada.

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