Há quase 30 anos, ainda residindo no Peru, ouvi falar muitas coisas interessantes sobre a USP e decidi que precisava conhecê-la. Parti de Arequipa, no Sul do Peru, em 27 de dezembro de 1995. Após uma jornada de quatro dias ininterruptos, incluindo viagens de ônibus e a travessia do “trem da morte” na Bolívia, cheguei à USP, em São Carlos, em 31 de dezembro, por volta das 22 horas. Iniciei essa viagem com apenas 400 dólares para os dois meses, incluindo todas as despesas. Esse cálculo equivocado foi simplesmente um reflexo da juventude, que, muitas vezes, subestima os perigos, mas que gerou uma série de desafios significativos ao longo da minha vida.
Após chegar à USP, em São Carlos, de táxi, primeiro localizei a Escola de Engenharia, onde os membros da segurança logo me indicaram o local de Computação. Cheguei ao ICMC alguns minutos depois, e junto com os seguranças, iniciamos a busca por um lugar para ficar. Como podem imaginar, no último dia do ano, não havia ninguém me esperando no alojamento. Conseguimos apenas um colchão, e permitiram-me descansar em uma sala de estudo muito próxima à segurança. Lembro-me também dos membros da segurança me levarem a pé para comprar um lanche, pois estava faminto. Embora a comida peruana seja excelente, confesso que aquele lanche foi simplesmente espetacular. Na segunda noite, fui conduzido ao segundo andar para dormir em outra sala. Literalmente, em 24 horas, experimentei uma ascensão notável!
Em 2 de janeiro, vários outros alunos já buscavam o início do curso de verão, e alguns não tinham onde ficar. Um deles conseguiu um cadeado e, juntos, trancamos uma sala de estudo no alojamento. Cada um deles também conseguiu um colchão, e passamos dois meses acima de algumas mesas naquela sala. Foi uma das melhores experiências que vivi.
Lembro-me de diversas peculiaridades, como a umidade do ambiente, que era muito alta para mim, a temperatura no verão e as chuvas intensas que até agora sinto muita falta. No entanto, nada disso foi desculpa para interromper meus estudos, pois meu desejo era iniciar o mestrado na USP. Após realizar a primeira prova em janeiro, as notas foram divulgadas, e havia dois grupos de alunos. Eu não entendia por que, mas estava no segundo grupo. Ao questionar, a atenciosa secretária Marília indicou que eu estava no grupo dos alunos que não estavam concorrendo ao mestrado. Algo estava errado! Ela verificou minha ficha de inscrição e, por não entender português, percebi que havia preenchido erroneamente. Havia uma pergunta assim:
“Você está concorrendo ao mestrado?”
O verbo “concurrir” em espanhol significa assistir. Então, entendi erroneamente que estavam perguntando se eu estava assistindo ao mestrado. Claro que respondi negativamente, gerando confusão. O fato é que eu não estava concorrendo e fui convidado como ouvinte. Precisava corrigir essa situação, e me encaminharam para falar com a Professora Maria Carolina Monard. Sendo ela argentina, riu da situação e lembro-me da frase que me disse: “esses gringos não sabem falar bem português”. Ela também explicou que a situação poderia mudar se eu tirasse uma boa nota acima de 8.6 (A) e se alguém me aceitasse como aluno.
Nas próximas semanas, meu único objetivo era claro: tirar uma nota acima de 8.6, e assim o fiz. Fui falar com vários professores até encontrar um que trabalhava com Redes Neurais e disse: “Isso é o que eu quero”. Claro que eu não entendia nada do assunto, mas o tema parecia muito interessante. O professor que me aceitou foi o atual Chefe do Departamento de Ciência da Computação, Prof. André Carlos Ponce de Leon Ferreira de Carvalho.
Quando o curso de verão chegou ao fim, já era março, e o Professor André me chamou para efetuar minha matrícula, solicitando também o passaporte. Lembro-me vividamente das palavras de André:
“Temos que realizar sua matrícula e precisamos tirar uma cópia do seu visto.”
Aí eu me perguntei: “visto? O que é isso?”
André: “Como você entrou no Brasil?”
Ernesto: “Eu apenas cheguei à fronteira e disse que ia fazer um curso na USP, e me deixaram entrar” (inocência 100%).
Foi nesse momento que descobri que, para iniciar o mestrado, precisava de um visto. O problema era que não era possível obter um visto de estudante dentro do Brasil! A pergunta inevitável surgiu: onde deveria ir para obter esse visto? Alguém sugeriu: vá para o Paraguai e retorne.
Parti de São Carlos com muito pouco dinheiro em direção a Foz do Iguaçu em uma quinta-feira. Na sexta-feira, descobri uma ponte que levava ao Paraguai e localizei a Embaixada do Brasil do outro lado da fronteira. No entanto, me informaram que não havia solução ali, pois precisavam verificar a documentação peruana, algo impossível naquele local. Eu teria que retornar ao Peru, mas, primeiro, precisava resolver o problema de voltar a São Carlos com o dinheiro escasseando.
Na mesma sexta-feira, peguei um ônibus até Presidente Prudente-SP por falta de dinheiro, chegando por volta da meia-noite. Liguei para um colega do curso de verão, Rogério Garcia, que era daquela cidade, pedindo ajuda. Ele me emprestou dinheiro, mas eu não sabia quando poderia devolver aquela quantia. Ele disse: “esqueça, depois você me paga“. Naquele momento, ele foi até a rodoviária e até ficou esperando meu ônibus partir. Cheguei a São Carlos no sábado e fui até a USP apenas para pegar minhas coisas e sair imediatamente de volta para o Peru. Era sábado, mas fui até a sala do Prof. André, e lá ele estava!
Após explicar a situação, dirigi-me imediatamente à rodoviária para retornar de ônibus. Parti de São Carlos naquele sábado e alcancei Arequipa no sábado seguinte, utilizando uma combinação de ônibus, trem e uma balsa para atravessar o rio no Pantanal do Mato Grosso do Sul, sempre dormindo no próprio transporte. Vale ressaltar que, durante a jornada, enfrentei a grandiosidade da Cordilheira dos Andes, com trechos alcançando altitudes de até 4.500 metros. Foram 9 dias sem interrupção, contando os dois dias da viagem para o Paraguai.
Graças a essa experiência e com a carta de aceitação em mãos, consegui obter o visto em Lima, Peru, e iniciei o mestrado em agosto de 1996. No início, não tinha bolsa, e o Prof. André também me emprestou dinheiro, que gradualmente pude reembolsar. Defendi minha dissertação em agosto de 1998.
Posteriormente, cursei o mestrado com a Profª. Roseli Francelin Romero e fui seu primeiro aluno de doutorado na época. Durante o doutorado, realizei dois estágios, o primeiro com o Professor Christos Faloutsos na Carnegie Mellon University, nos Estados Unidos, e o segundo na Technischen Universitat de Berlim, na Alemanha, com o Professor Klaus Obermayer. Ambas as experiências foram de um nível muito alto, e fico muito grato à USP. Viajei por terra do Peru até a USP 36 vezes e parei de contar.
Após essa experiência, decidi retornar ao Peru para transformar meu país, seguindo o exemplo do que aprendi. Acredito que muitas coisas mudaram em minha nação, e tudo isso foi graças à experiência adquirida na USP e no Brasil. Agradeço sinceramente por todas as vivências e desafios que enfrentei nessa aventura. Embora minha família seja completamente peruana, nossa primeira filha nasceu no Brasil, e, por esse motivo, continuamos a falar português e a preservar a cultura brasileira.
Muito obrigado à USP.
Muito obrigado, Brasil.