Danilo Bueno, especial para o USP Online
O poder dos armamentos atômicos, que ficou claro após as explosões em Hiroshima e Nagasaki no final da 2ª Guerra Mundial, fez com que as nações passassem a buscar formas de dominar as tecnologias que envolvem o uso de isótopos radioativos, tanto para mostrar um potencial militar de dissuasão, quanto para aproveitar as potencialidades pacíficas da radiação.
Com o objetivo de direcionar o potencial científico dos países para o uso pacífico das tecnologias nucleares, temendo a multiplicação de armamentos atômicos em sua área de influência, os Estados Unidos criaram em 1953 o programa “Átomos para a Paz” que previa a cooperação entre as nações na disseminação do uso dos isótopos radioativos para a geração de energia e produção de insumos médicos. Criado o projeto, o país que dominava a tecnologia de construção de reatores nucleares lançou um desafio: a nação que desenvolvesse as condições estruturais e de recursos humanos necessárias para a instalação de um centro nuclear para fins pacíficos receberia um reator para fabricação de radiofármacos e condução de pesquisas científicas.
O Brasil resolveu participar da disputa, graças principalmente ao entusiasta da energia nuclear e representante do Brasil na Comissão de Energia Atômica da ONU, almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (que hoje dá nome à usina Angra). Na visão do militar, o Brasil precisava dominar a tecnologia nuclear, além de avaliar e cuidar de suas reservas de urânio para manter sua soberania em um cenário geopolítico no qual ele sabia que os armamentos atômicos ocupariam papel central.
O Brasil acabou ganhando a disputa e o reator, graças a uma parceria entre o então recém-criado Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (coordenado por Mota e Silva até 1955) e a USP, que juntos fundaram o Instituto de Pesquisas Atômicas (IEA), que passou a chamar-se Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) a partir de 1979.
Para abrigar o novo reator e permitir a ampliação futura do Ipen, a USP doou na época um terreno de 500 mil m² na Cidade Universitária, além de fornecer apoio técnico nas várias áreas do conhecimento, enquanto o CNPq cuidou dos recursos necessários para a construção da infraestrutura. Atualmente, o instituto é uma autarquia do Governo do Estado de São Paulo, vinculado à Secretaria de Desenvolvimento, gerenciado técnica, administrativa e financeiramente pela Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), além de ser associado à USP para fins de ensino e pós-graduação. O Ipen abriga, dentro dos 120 mil m² de área construída, dez centros de pesquisa, onde trabalham cerca de 1.040 pessoas, dentre os quais 131 mestres e 208 doutores, que fazem parte do seu quadro permanente.
Ipen e USP
“Você queria saber a relação entre a USP e o Instituto?”, questiona o superintendente do Ipen, Nilson Dias Vieira Junior, que interrompeu suas férias para receber a reportagem do USP Online. “O Ipen foi criado pela vontade da USP e da sociedade brasileira como um todo de participar dessa revolução no mundo científico que a energia nuclear vinha iniciando”, afirma, explicando que as duas instituições caminham unidas desde o início.
De acordo com ele, a maior vantagem desta parceria é que ambas buscam o desenvolvimento de tecnologia de ponta. “O Brasil tem quatro reatores nucleares de pesquisa e todos estão em universidades, dois deles no Ipen, e por quê? Porque não se pode dissociar o campo de pesquisa nuclear da produção de conhecimento”, afirma Vieira. “Se você se isola, não consegue fazer nada nesta área”.
Ele explica que as motivações para a criação do Ipen não eram apenas científicas, mas também estratégicas. “Nós temos um ‘pré-sal’ nuclear no solo brasileiro. Hoje nós sabemos disso, mas naquela época a existência de grandes jazidas destes minérios no Brasil era apenas uma hipótese”. Era necessário, portanto, encontrar formas de aproveitar estes recursos para evitar que eles acabassem sendo cobiçados por outros países.
Desde então, várias unidades da USP colaboraram direta e indiretamente para o desenvolvimento do Ipen, desde a formação de recursos humanos até a atuação direta, como no caso da Escola Politécnica (Poli), que teve papel fundamental no desenvolvimento do setor de metalurgia do Instituto. Ao mesmo tempo, a USP beneficiou-se da produção acadêmica e do ensino promovido no Instituto para se tornar o maior centro de formação de mestres e doutores da América Latina. “A USP passou a usar o Ipen como forma de promover sua missão para com a sociedade”, afirma Vieira.
A criação do curso de Pós-Graduação em Tecnologia Nuclear do Ipen, em 1976, foi um marco da parceria entre a USP e o centro de pesquisa, que possibilitou uma maior troca de conhecimento e recursos humanos entre as instituições. Apesar de ser ministrado pelos pesquisadores do Ipen, o curso que tem cerca de 440 alunos, é vinculado à Pós-Graduação da Universidade. O programa obteve nota 6 na Capes, o que o qualifica como “de nível internacional”.
O Ipen também promove, em parceria com a Faculdade de Odontologia (FO) da USP, o Mestrado Profissional – Lasers em Odontologia, além de 17 disciplinas optativas para alunos de graduação.
Radiofármacos
Um ano após a instalação do primeiro reator, o Ipen iniciou a produção preliminar de radiofármacos, que passaram a ser distribuídos em 1959 e empregados no tratamento da tireoide e policitemia. Atualmente o instituto fabrica 38 produtos entre radiofármacos e reagentes liofilizados.
A distribuição dos radiofármacos tem uma logística complicada, já que alguns deles decaem rapidamente em outros elementos, como é o caso do Flúor-18 (usado em estudos do metabolismo cerebral, viabilidade do miocárdio e oncologia), que tem meia-vida de 110 minutos. Por isso foi necessário investir em logística para garantir o suprimento constante e ganhar a confiança do setor de saúde. “O Ipen e a classe médica formam uma simbiose. Eles confiam na gente”, explica o pesquisador. O Ipen abastece hoje cerca de 400 clínicas e hospitais por semana em todas as regiões do País.
A distribuição constante e segura dos radiofármacos deu segurança para o desenvolvimento da medicina nuclear brasileira. “No começo de sua atividade o Ipen firmou o compromisso de garantir o fornecimento dos radiofármacos para a classe médica. Era como se disséssemos pra o setor de saúde: ‘podem investir em tecnologia que nós vamos garantir os insumos’ “, afirma Vieira. “Resultado disso é que hoje temos um sistema de produção de radiofármacos de primeiro mundo, comparado a países ricos como o Japão e o Canadá, no que se refere à qualidade.”
No entanto, ainda há um longo caminho a percorrer em relação à quantidade de medicamentos produzidos. Até agora o Brasil não atingiu a autossuficiência em radiofármacos, dependendo desde a década de 1950 da importação de insumos. De acordo o superintendente, o País precisa aumentar em 2,6 vezes sua capacidade de produção para suprir toda a demanda interna. “O Brasil já ocupou uma posição de liderança nesta tecnologia, mas hoje fomos ultrapassados até por países não muito desenvolvidos, como a Argentina”.
Novo reator
Mas esta dependência deve acabar nos próximos anos, com a construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) sob responsabilidade da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), da qual o Ipen faz parte. O reator, que contará com recursos dos governos federal e estadual, é parte do Plano de Ação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e será construído na cidade de Iperó, que fica a 129 km da capital paulista. O complexo será implantado junto ao Centro Experimental de Aramar, da Marinha, onde está sendo projetado o submarino nuclear. Junto ao reator será implantado ainda o novo curso de Engenharia Nuclear da USP, em uma área cedida pela Marinha. “O Ipen passará a ser o intermediário desta extrapolação do conhecimento entre as diversas entidades”, afirma o superintendente do Ipen.
O superintendente vê com muito otimismo as possibilidades que se abrem com a construção do novo reator. “O desenvolvimento da medicina nuclear é o retrato do desenvolvimento de um país”, afirma, destacando que o investimento em saúde e bem-estar da população é típico de países desenvolvidos. “O Brasil vem se tornando cada vez mais uma sociedade longeva com o aumento da expectativa de vida. Isso significa que nós vamos precisar de mais radiofármacos”, explica.
O primeiro desafio do novo reator será produzir todos os radiofármacos necessários para suprir a demanda brasileira, e se possível fabricar um excedente que poderá ser exportado para países da região. “Essa é uma decisão que o povo brasileiro terá que tomar”, afirma o superintendente. “Por muitos anos nos beneficiamos da ajuda de outros países, talvez seja essa a hora, com o novo reator, de retribuir este apoio”, afirma. Essa meta tem como objetivo evitar flutuações no fornecimento de radiofármacos, como a que ocorreu em 2007 com a interrupção do reator canadense National Research Universal (NRU) responsável pelo atendimento de 30% a 40% da demanda mundial de molibdênio-99, necessário para a produção do tecnécio-99, principal radiofármaco usado em medicina nuclear.
Além da produção de medicamentos, o reator será utilizado no teste dos materiais e dos combustíveis do submarino nuclear desenvolvido pela Marinha. De acordo com o superintendente, o Ipen acompanha o projeto do submarino desde o início, tendo desenvolvido o Labgene, um protótipo do propulsor nuclear capaz de gerar energia elétrica com base nos combustíveis nucleares com potência de cerca 11 Megawatts elétricos (MWe).
O novo reator também vai dar um novo impulso à pesquisa com feixes de nêutrons, beneficiando a pesquisa brasileira em especial a USP, que vai usar parte das estruturas instaladas tanto do reator quanto do Centro Experimental da Marinha para atividades práticas de seu curso de Engenharia Nuclear. Com o novo reator será possível realizar pesquisas nas várias áreas de aplicação da tecnologia nuclear, como agricultura, conservação de alimentos, ciência de materiais, energia e meio ambiente, entre outros.
Mais informações: site www.ipen.br