A linguagem humana utiliza um conjunto finito de elementos, como gestos, sons e palavras, para criar uma aparente infinidade de expressões, sendo muito mais complexa do que as formas de comunicação de outras espécies. Um estudo recente afirma que a complexidade da nossa linguagem não demorou milhares de anos para ser atingida, como afirmam algumas correntes de estudos na área. Os humanos passaram a falar como hoje de forma muito rápida, combinando dois sistemas de comunicação pré-existentes na natureza, encontrados nos pássaros e nos macacos.
A pesquisa foi realizada em parceria por Vitor Augusto Nóbrega, atualmente doutorando no Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Shigeru Miyagawa, professor de linguística e língua e cultura japonesa no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos.
Completamente única, a nossa linguagem possui duas camadas: uma expressiva e outra lexical. A expressiva é composta por traços gramaticais que não são produzidos independentemente, como flexões de número, gênero, caso, entre outros elementos relativos à organização das sentenças. Algo semelhante pode ser verificado no canto dos pássaros – rouxinóis, por exemplo, conseguem produzir até 200 canções manipulando seus padrões. Entretanto, tais canções, apesar de suas variações de padrão, sempre expressam uma mesma mensagem, como identidade, localização, disponibilidade sexual, entre outras informações.
A camada lexical, por sua vez, diz respeito ao conteúdo de uma sentença, sendo composta por elementos que possuem uma referência no mundo. Ela pode ser encontrada em alguns tipos de macacos, que emitem vocalizações de alarme para anunciar predadores, por exemplo, ‘leopardo’, ‘cobra’, ‘águia’, mas não são capazes de transmitir mensagens que tratem de uma ideia abstrata do predador, por exemplo.
De acordo com o estudo de Nóbrega e Miyagawa, essas duas camadas foram integradas de forma rápida e bem sucedida, possibilitando a emergência da linguagem humana tal como a conhecemos atualmente, isto é, com estruturas complexas, desde as palavras até as sentenças. Isso nos tornou capazes de transmitir informações essenciais, mas também de fazer recombinações com significados novos. As palavras ‘Leonardo’, ‘comer’ e ‘bolo’, por exemplo, podem se transformar em várias frases com significados diferentes (por exemplo, “Leonardo comeu bolo ontem”, “Bolo, é o que Leonardo comeu”, “Leonardo não come bolo”), mas as informações essenciais sempre são as mesmas (Leonardo, comer e bolo).
A evolução da nossa linguagem, portanto, consistiu na combinação desses dois sistemas pré-existentes, dando origem à sintaxe. “Em nosso trabalho, demonstramos que a linguagem humana emergiu abruptamente através da integração de dois sistemas disponíveis na natureza, um sistema lexical, presente nas vocalizações de alarme de alguns primatas, e um sistema expressivo, presente no canto dos pássaros, com a mesma complexidade que atestamos hoje em dia”, explica Nóbrega.
Essa teoria está em consonância com a proposta para a emergência da linguagem humana do famoso linguista e filósofo Noam Chomsky, a qual defende que, através de uma operação combinatorial (que permitiu a junção das camadas), nasceu a nossa linguagem, considerada gerativa porque é capaz de criar um conjunto infinito de palavras, sentenças e expressões.
Integração
Para atestar a inexistência de uma linguagem primitiva que teria se desenvolvido ao longo dos anos, Nóbrega e Miyagawa se valeram da “Hipótese da Integração”, proposta pelo professor do MIT e alguns colegas, e que encontrava evidências na dissertação de mestrado do estudante. Tópicos em composição: Estrutura, Formação e Acento, defendida na FFLCH, em 2014, argumenta que as palavras compostas das línguas naturais, como guarda-chuva, são formadas superficialmente por compostos diferentes entre si, por exemplo, são pronunciadas diferentemente, mas todas contêm uma estrutura interna uniforme. No artigo, os autores afirmam que cada palavra é tão complexa quanto uma sentença, o que significa que é pouco provável que as palavras usadas hoje em dia sejam descendentes de um modo de falar primitivo. “Não há evidências para se assumir que os compostos sejam considerados fósseis linguísticos de uma protolinguagem”, sintetiza Nóbrega.
O estudo, que vai na contramão da visão gradualista defendida por alguns pesquisadores, demonstra como as pesquisas em linguística vêm tendo um impacto em questões até então restritas a outras áreas, como a biologia. “Nossas discussões sobre a correlação entre alguns sistemas de comunicação animal e a emergência da linguagem humana pode elucidar diversos pontos sobre a natureza e as características desses sistemas”, conclui o pesquisador.
Confira o artigo na íntegra.
Por Giovanna Lukesic Reis, para a Pró-reitoria de Pesquisa da USP