Picadas de escorpião são a maior causa de acidentes com animais peçonhentos no Brasil, segundo o Ministério da Saúde. Em Ribeirão Preto foram 261 vítimas em 2015, sem nenhuma morte, segundo a Secretaria da Saúde. As vítimas dessas picadas apresentam reação local ou sistêmica, que pode evoluir para edema pulmonar, com chance de levar à morte, principalmente, crianças e idosos.
Pesquisadores da USP de Ribeirão Preto desvendaram o mecanismo que leva ao edema pulmonar e sua relação com os mediadores lipídicos (substâncias produzidas pelo sistema imunológico ante o ataque de um corpo estranho) e com a interleucina 1β (IL-1β). A descoberta levou o grupo a tratar o edema pulmonar com anti-inflamatório comum, existente no mercado, e salvar 100% dos animais inoculados por escorpião. Esses resultados abrem caminho para salvar a vida de cerca de três mil pessoas que morrem envenenadas por escorpião por ano ao redor mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS).
O artigo Opposing roles of LTB4 and PGE2 in regulating the inflammasome-dependent scorpion venom-induced mortality, descrevendo esses resultados foi publicado na edição de hoje, 23 de fevereiro, da Nature Comunications, versão online de uma das mais importantes edições científicas do mundo.
Os antagonistas do processo
Ao identificar que dois mediadores lipídicos, as prostaglandinas e os leucotrienos, são responsáveis pela regulação da ativação do inflamassoma, estrutura essencial para a ativação da resposta inflamatória, os pesquisadores também descobriram que esses mediadores têm papéis antagônicos na regulação dessa inflamação.
“Enquanto a prostaglandina E2 (PGE2) aumenta a produção da IL-1β [molécula formada pela ativação do inflamassoma], o leucotrieno B4 [LTB4] diminui a produção dessa molécula”, na verdade, buscando equilíbrio no sistema de defesa. É o que revela a professora Lucia Helena Faccioli, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto (FCFRP) da USP e orientadora do estudo.
Com essas informações, os pesquisadores identificaram também que no envenenamento por escorpião se não acontecer a regulação da ativação do inflamassoma pelo LTB4, há um aumento exagerado de PGE2 e de IL-1β. “Quando isso ficou claro, começamos a tratar os animais com um anti-inflamatório comum, já existente no mercado, que inibe a produção de prostaglandinas. Com isso conseguimos reduzir o edema pulmonar e 100% dos animais sobreviveram”, diz Karina F. Zoccal, aluna de pós-doutorado da FCFRP e principal autora do estudo publicado.
Outro aspecto interessante encontrado nos estudos, diz a professora Lucia, é que a ciência conhecia o LTB4 como uma molécula inflamatória, mas nossos resultados indicam que este lipídeo também tem um papel anti-inflamatório. “Esses resultados também abrem caminhos para estudos de outras doenças provocadas pela inflamação”.
No rastro dos mediadores lipídicos
Parece óbvio e simples, mas para chegar a esses resultados, o laboratório coordenado pela professora Lucia estuda há anos mediadores lipídicos, em especial as prostaglandinas e os leucotrienos. “A comunidade científica já sabia que o envenenamento por picada de escorpião causa edema pulmonar, mas o mecanismo que leva ao edema era desconhecido, assim como a relação com os mediadores e a ativação do inflamassoma”.
Durante anos, a equipe realizou estudos in vitro e, ao obter resposta positiva para a hipótese do envolvimento dos mediadores, passou à investigação em modelos animais, o que levou os pesquisadores, na opinião da professora, a uma resposta mais próxima do que podem encontrar em humanos. “Foi no modelo animal que conseguimos concluir a eficácia do uso de anti-inflamatórios”.
Criaram, então, um protocolo para tratar os animais. Usaram camundongos, que recebiam o anti-inflamatório e ao mesmo tempo o veneno. Nesse primeiro protocolo, 100% dos camundongos sobreviveram. Num segundo momento dos experimentos, inocularam o veneno entre 15 minutos e meia hora depois, foram tratados com o anti-inflamatório. Desse grupo de animais, entre 70% a 80% sobreviveram. “Isso mostra que o tratamento é efetivo mesmo quando dado terapeuticamente”, avalia Lucia.
A professora acredita que os testes em humanos devem começar nos próximos meses, assim que o projeto for aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, onde já foi protocolado em dezembro último. Lembra ainda que, mesmo com o uso do anti-inflamatório, o soro antiescorpiônico continuará sendo administrado, pois além de ser o protocolo estabelecido para esse tratamento, o veneno do escorpião desencadeia outros eventos no organismo, que dependem do soro. “A nossa ideia é inibir o edema pulmonar até que o soro seja aplicado”.
O estado de São Paulo é considerado região endêmica de escorpião, causada principalmente pelas condições climáticas, de saneamento e pelo desmatamento. “A espécie mais comum no Brasil é o escorpião amarelo o Tityus serrulatus, extremamente venenoso, e com esses resultados, abrimos caminho para salvar vidas”, comemora a professora.
Todo o projeto desenvolvido pelo grupo foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Participaram ainda do trabalho os professores Elaine Candiani Arantes, Carlos A. Sorgi e Francisco W. G. Paula-Silva, todos da FCFRP; Dario Zamboni e Juliana I. Hori, ambos da FMRP, e Carlos H. Seresani, da Escola de Medicina da Universidade de Indiana, Estados Unidos.
Rosemeire Soares Talamone com colaboração de Crislaine Messias, de Ribeirão Preto
Mais informações: (16) 3315.4303