Na declaração que encerrou o terceiro Fórum Social Mundial das Migrações, realizado na Espanha em 2008, migrantes, desalojados e refugiados de diversos países e organizações pontuaram que um “mundo sem muros é condição essencial para construir outro mundo possível”.
A necessidade de se construir uma nova realidade ainda se faz presente no Brasil de hoje, num mês que teve como notícia nas páginas dos jornais de sua maior cidade relatos de agressões a imigrantes. No centro de São Paulo, haitianos circulavam pelas ruas quando foram baleados por projéteis de chumbinho. O motivo especulado: xenofobia.
No último dia 11 de agosto, o Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) e o Grupo de Estudos Gênero, Mulheres e Temas Transnacionais (Gemttra), ambos da USP, realizaram o seminário Imigração Internacional Recente para São Paulo na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. No evento, foram ministradas sete palestras abordando as causas da imigração e como os imigrantes são recebidos e tratados no Brasil. Ao final, abriu-se um espaço para o debate entre os palestrantes e a plateia.
Para a coordenadora do Gemttra, a professora Maria Quinteiro, a ocasião teve dois objetivos principais. O primeiro era ressaltar o papel da conexão entre o trabalho acadêmico e o trabalho de militância realizado por ONGs e entidades religiosas junto aos imigrantes. O segundo era reforçar a importância de se evidenciar as graves violações de direitos sofridos durante o processo de imigração. “Quanto mais se falar, mais se diagnosticar, mais se apresentarem propostas, mais será encurtado o processo que levará a um bom termo as demandas de imigração no Brasil”, afirmou ela.
Uma realidade histórica
De acordo com os dados do último Censo Demográfico, realizado em 2010, e divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de imigrantes que, vindos de outros países, viviam no Brasil há pelo menos cinco anos e em residência fixa chegou a 286.468. O número foi 86,7% maior do que o encontrado pelo Censo Demográfico de 2000, quando foram registrados 143.644 imigrantes na mesma situação.
Alicerçada pelas conclusões dos diversos estudos apresentados durante o encontro, para a professora, o objetivo maior da imigração é “melhorar de vida”. Em São Paulo, descreveu ela, os imigrantes são em sua maioria pessoas pobres, discriminadas, geralmente negros, que buscam ajuda de abrigos, organizações religiosas, e moram nos bairros centrais e periferias da cidade.
“O Brasil ao longo da sua história teve várias políticas e estratégias migratórias”, relembrou a pesquisadora ao mencionar que após a abolição, uma das prioridades do governo vigente era substituir o trabalho escravo pelo trabalho livre de imigrantes europeus. A chamada “imigração familiar” foi, por muitos anos, prioritária pelo governo. Fundamentada em uma concepção eugênica de “embranquecimento da população”, a política da época acreditava que a introdução de cidadãos europeus via subvenção estatal renderia frutos “positivos” para o País. Fato que jamais corroborou com a realidade dos migrantes que, vindos da Itália e outros países europeus, também fugiam de situações críticas, pobreza extrema e não tinham qualquer preparo especial para o trabalho aqui.
Migrações em fluxo
Com o passar dos anos e o aumento do fluxo internacional de migrações, o Brasil permanece como rota de diversos países, sem necessariamente acomodar suas políticas e legislação para essa nova realidade. A chamada “Lei de Imigração”, datada da época da ditadura militar, ainda restringe a vinda de estrangeiros.
Para Berenice Young, mestre em Psicologia Social e psicóloga do Serviço Psicossocial do Eixo Saúde na Missão Paz – uma organização missionária que acolhe imigrantes e refugiados em São Paulo -, compreender quem são esses estrangeiros é questão fundamental. Em estudo realizado na primeira década dos anos 2000, Berenice entrevistou 86 hispano-americanos que deixaram seus países em troca de uma nova vida no Brasil.
A maioria dos entrevistados eram homens (64%), com idade entre 20 e 40 anos, nascidos na Bolívia, Peru e Chile. Com graus de escolaridade variados (incluindo cursos técnicos e formação superior), muitos argumentavam que questões econômicas foram a principal motivação para a migração. Entretanto, fugas em detrimento de relacionamentos pessoais, discriminação e até mesmo luto estavam entre os motivos que os levaram a deixarem seus países de origem.
“Os motivos que essas pessoas sul-americanas deram para estarem no Brasil formam um leque muito maior dos supostos geralmente concebidos”, acredita Berenice, destacando também que a maioria dos entrevistados declarou se sentir numa situação melhor aqui do em seus países de procedência. Contudo, para a especialista ainda falta muito para mapear todas as motivações dos migrantes.
Também trabalhando junto à Missão Paz, a advogada especialista em Direitos Humanos, Eliza Donda, revelou que, além do acolhimento físico e psicológico, os migrantes que chegam ao Brasil requisitam assistência jurídica para lidar com inúmeras questões que podem ir desde a legalização de suas presenças no Brasil até a ordem pessoal, familiar. Segundo a advogada, de 2013 até maio de 2015, foram atendidas pelo setor jurídico da Missão Paz mais de 900 pessoas. Dentre elas, os quatro maiores grupos atendidos incluem angolanos, congoleses, bolivianos e, recentemente, haitianos.
A situação do Haiti
Conforme afirmou o haitiano Marc Elie Pierre, que estudou diplomacia na ANDC – Academie Nationale Diplomatique et Consulaire em Porto Príncipe e participou do documentário Utopia, realizado pelo SESC – Santo Amaro/Funarte, em 2013, entender a situação do Haiti é crucial para compreender a chegada de migrantes ao Brasil. Primeiro país do mundo a abolir a escravidão em 1794 e obter sua independência na América Latina, o Haiti teve que lidar com uma ocupação americana que motivou uma das primeiras diásporas migratórias entre 1915 e 1934.
Quando governado por François Duvalier, o Papa Doc, o país sofreu nas mãos de uma implacável ditadura que, desde 1957, levou a uma nova fuga de parte da população até o final da década de 1980, quando após uma sucessão de golpes, o país conseguiu restaurar sua democracia. Entretanto, a paz do Haiti continuou instável nas décadas seguintes até que o terremoto de 2010 devastou boa parte do país, sendo um dos responsáveis pelo novo levante migratório.
Um quadro constante
Trabalhando com a população negra, em especial vinda de países africanos, mas também haitianos e países latinos, Alex André Vargem, membro do Instituto do Desenvolvimento da Diáspora Africana no Brasil, foi taxativo ao afirmar que os imigrantes negros dessa “nova leva” estão sofrendo diversas violências físicas e simbólicas, em especial, no seio das entidades responsáveis por acolhê-los.
“Os primeiros africanos que vieram para o Brasil após a escravidão chegaram nas décadas de 1960 e 1970, pós-independência de países na África. Em seguida, vieram os refugiados de governos em crise, nos anos 1980”, descreve Alex. Atualmente, muitos dos novos migrantes são jovens estudantes que vêm ao país por meio de acordos bilaterais entre Brasil e países africanos. “Muitos deles – em torno de 6 mil entre 2010 e 2013 – são estudantes de universidades públicas”, relata.
Entretanto, apesar de chegarem tecnicamente amparados pelo Estado, esses jovens têm que enfrentar, dentro das próprias universidades e comunidades nas quais estão inseridos, uma série de violências motivadas por xenofobia e preconceito. Citando, entre diversos casos, um incêndio criminoso ocorrido em um alojamento de estudantes africanos na Universidade de Brasília em 2007 e o assassinato da estudante angolana Zulmira Cardoso no bairro do Brás em 2012, Alex reiterou o fato de que a sociedade não se dá conta dessas violações. “Não são ações isoladas. É um quadro constante”, defende ele.
Novas políticas para um novo mundo
Entre levantamentos sobre o aumento da presença de migrantes de países islâmicos no Paraná, a chegada de refugiados escondidos em porões de navios na costa brasileira e os perigos do tráfico de pessoas que não apenas passam pelo Brasil, mas se alimentam de populações pobres no interior do País, os participantes do seminário destacaram que, dentre as várias causas para o fluxo migratório acelerado está a globalização da economia. Para a pesquisadora citada da Unesco, Mary Garcia Castro, a globalização “não só potencializa que muitos migrem em busca de oportunidades de mobilidade social e melhores condições de vida, mas também amplia a distância entre os que têm e os que não têm”.
Os artigos 13 e 14 da Declaração Universal dos Direitos Humanos preconizam que todas as pessoas têm o direito à liberdade de se moverem dentro das fronteiras de cada Estado, assim como livremente circular no interior de um país. Para os presentes no seminário, no Brasil, ainda falta identificar quem de fato faz parte do todo.
Segundo a organizadora do evento, Maria Quinteiro, se faz cada vez mais necessária a criação de uma lei atualizada que dê conta da realidade migratória contemporânea. Para ela, “o Estado deve garantir a proteção devida em consonância com acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário”.