Marcelo Pellegrini / Agência USP
As brechas na regulamentação do sistema financeiro mundial foram o principal motivo da crise financeira de 2008, ainda sentida e refletida em protestos como o Occupy Wall Street, que completou um mês no dia 14 de outubro. O movimento que critica abusos do sistema financeiro americano surgiu de um grupo reunido na ilha de Manhattan, em Nova York, se espalhou pela cidade e para outros lugares como Boston, São Francisco, Chicago e Seattle, nos EUA, e capitais europeias.
No entanto, pouco se fez para prevenir as causas deste cenário. Um estudo elaborado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) mostra que a evolução da regulação financeira no mundo não contemplou os instrumentos que geraram o cenário da crise. Um exemplo é a securitização, utilizada para camuflar financiamentos de risco como as hipotecas de imóveis nos Estados Unidos.
De acordo com o estudo do economista Thiago Navarro Amorim, a crise foi produto de uma tentativa fracassada de regulação do mercado financeiro internacional, conhecida como Basileia. Criada em 1988, para impor regras aos mercados financeiros de forma homogênea e global, a norma focou seus esforços sobre o risco de crédito e submeteu os bancos às suas diretrizes. Em outras palavras, a Basileia serviu para medir o nível de risco dos bancos, numa tentativa de controlar suas atividades, para que eles não emitiam muita moeda por intermédio do crédito, o que pode gerar uma crise, caso haja inadimplência.
Em consequência, criou-se a tendência de os bancos manterem no balanço (demonstração da situação financeira que a empresa se encontra) apenas os ativos (bens que podem trazer benefícios futuros) que a classificação interna de risco das instituições financeiras consideravam pouco arriscados em relação ao que a Basileia definiu. “Os títulos e ativos bancários considerados muito arriscados eram deslocados para fora do balanço das instituições”, diz Amorim.
Além da exclusão do balanço dos bancos, a camuflagem de ativos de risco foi ampliada por novos instrumentos financeiros não contemplados pela regulação, como a securitização. Este instrumento nada mais é do que uma prática que agrupa/empacota vários ativos financeiros, em sua maioria de crédito e financiamento, para negociá-los no mercado financeiro. “Por meio da securitização, títulos de risco são empacotados com títulos seguros e vendidos, o que dificulta ou impossibilita a mensuração do risco destes papéis para outras instituições financeiras”, ressalta Amorim. ”Estes instrumentos permitiram, em um primeiro momento, que gestores e investidores tivessem um maior retorno com maior risco”.
O estudo, que traçou a evolução da regulação dos mercados financeiros e o risco das instituições financeiras brasileiras, mostrou que houve efetivamente uma evolução da regulamentação no mundo desde a década de 1980. “Porém, com brechas que permitiram a disseminação de operações que trouxeram mais risco para os bancos, como o empacotamento indiscriminado de hipotecas americanas”.
O trabalho Contingência de crises financeiras: um estudo sobre a evolução da regulação dos mercados e o risco das instituições financeiras no Brasil foi orientado pelo professor Jose Roberto Securato.
Securitização
Após a crise das empresas de internet, entre 1995 e 2000, e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, seguidos pelas guerras contra o terrorismo no Afeganistão e Iraque, os Estados Unidos viviam um período de grande abalo econômico.
“A economia americana ficou fragilizada. Por isso, o governo na tentativa de alavancar o consumo interno realizou 7 reduções de juros em 7 semanas, atingindo a taxa de juros a 1%”, relembra Amorim. “No entanto, esta medida é arriscada, pois a tendência para este tipo de cenário é estourar o consumo interno e causar um forte endividamento, seguido de provável inadimplência, ou seja, não pagamento de dívidas”.
Como consequência das reduções de juros, o consumo interno americano disparou. As baixas taxas de juros incentivaram o governo a adotar medidas para ampliar o acesso a casa própria aos americanos de baixa renda.
A expansão do crédito para habitação impulsionou os negócios do subprime (financiamentos de risco) e também do mercado prime (financiamentos de menor risco), o que aumentou a demanda por imóveis, até então super valorizados. Soma-se a isso, as baixas taxas de juros que estimulavam a realização de novas hipotecas sobre o mesmo imóvel. “Assim, formava-se o cenário adequado para formação de uma bolha nos preços”, afirma o economista.
Ou seja, os bancos ofereciam créditos à famílias de risco, que poderiam não ter como arcar com a dívida do financiamento, o chamado financiamento subprime. Isso acontecia porque a taxa de juros estava muito baixa, no entanto, a economia estava em recuperação e caso um cidadão perdesse o emprego, muito provavelmente, ele já se tornaria inadimplente.
O cenário de juros baixos, que propiciava o aumento da demanda por imóveis, do fácil acesso ao financiamento, era acrescido de um movimento de instituições financeiras no sentido de empacotar milhares de hipotecas. Em outras palavras, os bancos agrupavam milhares de hipotecas subprime e prime e, com isso, camuflavam o risco real dos créditos cedidos para famílias de risco. Com essa manobra de securitização, os bancos norte-americanos repassavam os títulos para os mercados financeiros globais, espalhando o risco de inadimplência pelo mundo e gerando o cenário da crise.
“Em linhas gerais, a securitização de hipotecas imobiliárias permitia aos bancos repassar o risco para outras instituições, que em geral não tinham acesso ao real perfil de risco das operações”, resume Amorim.
Por quê o Brasil escapou?
Com o surgimento do Neoliberalismo nas décadas de 1970 e 1980, as economias mundias iniciam uma política de privatizações e redução das regulamentações e da força dos Estados nas economias. Paralelamente a isso, aconteceu um crescimento da participação do setor privado, com as denominadas ‘privatizações’ nos países subdesenvolvidos, e um aumento do setor financeiro na economia global.
No Brasil, a Basileia foi implementada tardiamente, de forma mais rígida e mais conservadora, em 1994. No entanto, o padrão internacional de regulação também seguiu o foco na regulação do risco de crédito.
Em paralelo a Basileia, em 1995 foi criado o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer) e o Programa de Incentivo à Redução da Presença do Setor Público Estatal na Atividade Financeira Bancária e a Privatização de Instituições Financeiras Estaduais (Proes). Ainda no ano de 1995, mais precisamente em 31 de agosto de 1995, também é criado o Fundo Garantidor de Crédito (FGC).
“Estas ações contribuíram para manter uma relativa solidez do setor financeiro nacional durante a crise, mantendo o pais menos exposto à contaminação sistêmica do mercado financeiro internacional”, conclui Amorim.