Roberto C. G. Castro / Jornal da USP
Profissional corajoso, sensível, capaz de percorrer 200 quilômetros para obter uma única frase, um eterno “foca” (repórter iniciante). Essa foi a descrição do jornalista Ricardo Kotscho feita pelo repórter fotográfico Jorge Araújo durante o Seminário 50 Anos de Carreira de Ricardo Kotscho, promovido pelo Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e realizado no dia 30 de maio nas dependências da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo.
Além do homenageado, o evento teve a presença também dos jornalistas Clóvis Rossi, colunista da Folha de S. Paulo – que em 1964, como editor-chefe do jornal O Estado de S. Paulo, deu o primeiro emprego a Kotscho –, Audálio Dantas, presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo na época do assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975, Eliane Brum e Hélio Campos Melo. O encontro consistiu numa descontraída conversa entre os presentes – acomodados num comprido sofá instalado no palco do Teatro Cásper Líbero –, sob a coordenação da jornalista Mariana Kotscho, filha do jornalista homenageado.
A coragem de Kotscho foi exemplificada por Clóvis Rossi com uma matéria que, segundo o colunista da Folha de S. Paulo, provocou a abertura política promovida pelo general Ernesto Geisel, o então presidente da República imposto pelo regime militar (1964-1985). Produzida numa época em que a imprensa estava sob censura e as fontes de informação se recusavam a dar entrevistas com medo de represálias por parte dos militares, a matéria abordou a morte do operário Manuel Fiel Filho, poucos meses após a morte de Herzog e nas mesmas circunstâncias: sob tortura nas dependências do DOI-Codi, órgão de repressão ligado ao regime.
“Essa matéria levou Geisel a tirar o general Ednardo D’Ávila Mello do comando do II Exército”, disse Rossi. “Foi a melhor contribuição de Kotscho para a redemocratização do Brasil.”
Em comentário à fala de Rossi, Kotscho explicou como conseguiu fazer a matéria. Disse que foi à fábrica onde Fiel Filho trabalhava. Ali, embora os funcionários se recusassem a falar sobre o caso, descobriu o bairro onde o operário morava. No bairro, as pessoas também evitavam falar com o jornalista. Mesmo assim, soube que a viúva se mudara para outro bairro, próximo a uma certa padaria.
“Estava nessa padaria e então passou um religioso, desses que andavam com um crucifixo no peito. Resolvi perguntar para ele se conhecia a viúva. Ele me disse que acabava de vir da casa onde ela estava.”
Na entrevista que fez com a viúva de Fiel Filho, Kotscho revelou os detalhes do desaparecimento do operário. “Ela me disse também como ficou sabendo da morte do Fiel. De dentro de um carro, jogaram um pacote no quintal da casa dela – eram roupas e documentos – e gritaram: ‘Olha o que sobrou do teu marido’. Foi assim.”
Audálio Dantas citou as matérias de Kotscho sobre o assassinato de Vladimir Herzog, morto sob tortura em 25 de outubro de 1975. “No Sindicato dos Jornalistas, divulgávamos boletins sobre o desaparecimento de jornalistas. Os jornais estavam sob censura e, quando conseguiam publicar alguma coisa, publicavam com aspas o que o sindicato divulgava. Kotscho não se contentava com as aspas e todo dia ia ao sindicato conversar, buscar mais informações. Ele fez a melhor cobertura sobre a morte do Vlado.”
Coragem também não faltou a Kotscho para colaborar numa outra iniciativa de importantes consequências para a democracia no Brasil – a produção do livro Brasil: Nunca Mais. Publicado em 1985 sem os nomes dos autores, apenas com o prefácio assinado por dom Paulo Evaristo Arns – então arcebispo de São Paulo –, o livro foi resultado da cópia dos processos instaurados contra opositores do regime no Superior Tribunal Militar (STM), em Brasília (DF), durante a ditadura.
Orientados pelos advogados, os réus relatavam, durante o processo e diante do juiz, as torturas sofridas na prisão, que assim ficavam registradas nos autos. Em seguida, os advogados iam ao STM e retiravam os processos, que eram reproduzidos em duas máquinas copiadoras instaladas na sala de um prédio no centro de Brasília. Nesse processo – coordenado pelo pastor presbiteriano Jaime Wright, morto em 1999 –, foram copiadas mais de 1 milhão de páginas de documentos, que revelaram os casos de 1.800 pessoas torturadas de 285 formas diferentes por 444 torturadores.
“O nosso trabalho era transformar todos aqueles dados dos processos num texto que as pessoas pudessem ler”, lembrou Kotscho, no evento em sua homenagem. Mariana Kotscho interrompeu o relato do pai para lembrar o lançamento da publicação: “A mamãe mostrou o livro para mim e para minha irmã e disse: ‘Olha, papai escreveu este livro, mas ninguém pode ficar sabendo’”.
Reportagem
A figura de Kotscho como um repórter incansável foi destacada por Eliane Brum. “Em toda a sua carreira, ele se lambuzou de humanidades, mergulhou na alma dos vários Brasis, não se deixou burocratizar”, disse Eliane. Ela se divertiu ao lembrar a reação de Kotscho contra os jornalistas que se acostumaram a fazer matérias na redação, diante do computador. “Ele dizia que tinham que cortar as linhas telefônicas do jornal, para os repórteres irem para as ruas sujar os sapatos”. Segundo Eliane, Kotscho chegou a criar um pleonasmo para ironizar os colegas que insistiam em fazer textos sem sair do jornal. Antes de se retirar para uma cobertura, gritava na redação: “estou saindo para uma ‘reportagem externa’”.
Ele dizia que tinham que cortar as linhas telefônicas do jornal, para os repórteres irem para as ruas sujar os sapatos.
Para Kotscho, o repórter não pode se deixar limitar pela tecnologia, que foi feita para ajudar, mas não se trata de um fim em si mesmo. “O que está no Google é uma história já contada por alguém. Nós temos que alimentar esse espaço com novas histórias”, disse. Segundo ele, era justamente a reportagem que diferenciava os jornais nas décadas passadas. “Havia uma saudável disputa entre Cruzeiro e Manchete, Folha e Estado, Globo e Jornal do Brasil, basicamente porque um tinha uma boa história que o outro não tinha”, destacou. Hoje há menos reportagem e, com isso, todas as publicações parecem que têm um único pauteiro e o mesmo repórter, acrescentou. “É preciso que a imprensa dê mais espaço para a reportagem.”
Kotscho ainda lembrou o período em que atuou em três campanhas à Presidência da República como assessor de imprensa de Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Disse que, em suas viagens em campanha, produzia matérias sobre o País e as distribuía para jornais de todo o Brasil. Alguns editores se acostumaram com essa prática e chegavam a cobrar os textos, pedindo rapidez porque o prazo de fechamento do jornal estava se esgotando. “Era como se eu fosse repórter deles”, riu o veterano jornalista. “O Lula reclamava dizendo que eu era mais assessor da imprensa do que assessor de imprensa dele.”
O seminário 50 Anos de Carreira de Ricardo Kotscho foi organizado pelo professor da ECA Eugênio Bucci – que chegou após o início do evento e ouviu entre a plateia as homenagens a Kotscho – e pelo mestrando Camilo Vannuchi.