Não são poucos os convênios que a USP estabelece com universidades do continente africano, sobretudo aquelas de países de língua portuguesa e em desenvolvimento. A USP integra, por exemplo, o Programa Estudante-Convênio de Graduação (PEC-G) e de Pós-Graduação (PEC-PG), ambos geridos pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE) e Ministério da Educação (MEC) do Brasil. O programa concede bolsas para estudantes de países de língua portuguesa da África, América Latina e Caribe com os quais o Brasil mantém acordo educacional, cultural ou científico-tecnológico para que eles realizem seus estudos inteiramente no Brasil.
E novas iniciativas de cooperação acadêmica com a África continuam surgindo. No início de maio, a Vice-Reitoria Executiva de Relações Internacionais (VRERI) da USP assinou um Acordo de Cooperação e Convênio Acadêmico com a Stellenbosch University (África do Sul) que possibilitará o intercâmbio de docentes e alunos nas áreas de Ciências Humanas, Exatas e Biológicas.
Em 2012, segundo dados do Anuário Estatístico da USP, cerca de 149 intercambistas da USP, entre graduação e pós-graduação, eram provenientes de países africanos. Joaquim Maloa e Alexandrino Nunes são dois deles, que você conhece agora.
A segunda sorte
Três coisas chamaram a atenção do moçambicano Joaquim Maloa logo em sua primeira temporada no Brasil – ele veio em 2010 para fazer mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
A primeira foi a dinâmica das aulas: “como já lecionava no meu país, vim pensando que conhecia Sociologia, mas aqui eu percebi que ainda tenho muito a aprender”. A segunda foi que os jovens compartilham o espaço da Universidade de forma muito mais liberal do que em Moçambique.
A relação entre negros e brancos na sociedade brasileira foi a terceira surpresa para Joaquim. “O Brasil carrega essa imagem de um país sem preconceitos”, ele observa. O moçambicano afirma, porém, já ter sofrido discriminação no Brasil por ser negro. Ele vê negros nas favelas ou na televisão, mas estranha que, na Universidade, em sua visão um espaço de integração, encontre muito poucos.
Conhecer a trajetória de Joaquim Maloa é acompanhar também um pouco do processo histórico de Moçambique e como Brasil, África e USP estabelecem vínculos entre si.
LínguEnquanto cursava o ensino secundário, viu o fim da guerra civil que assolava o país desde sua independência e, em 1994, as primeiras eleições presidenciais e legislativas de Moçambique. Em 1999, no penúltimo ano de escola, Joaquim foi convocado para a primeira turma que o serviço militar obrigatório formaria. Não foi um período fácil, mas Joaquim deixou o serviço militar em 2001 e, no ano seguinte, já cursava Ciências Sociais na Universidade Eduardo Mondlane, a melhor instituição pública de Moçambique. Joaquim terminou seus estudos com uma monografia sobre o papel dos filhos no processo de divórcio dos adultos.
Quando estava terminando o bacharelado, Joaquim reencontrou Etelvina Meque, uma vizinha com quem, na adolescência, tivera um curto relacionamento. Em novembro de 2006, em uma cerimônia secreta, eles se casaram no civil. Mas os rumores sobre a união se espalharam rapidamente e até hoje a sogra de Joaquim e sua esposa cobram uma cerimônia religiosa para, como dizem, “acomodar as partes”.
Aos 27 anos, ele foi para a cidade de Lichinga para dar aulas no Instituto de Formação em Administração Pública e Autárquica (Ifapa), de onde é funcionário até hoje – está licenciado enquanto realiza seu doutorado na USP.
Foi em 2009 que Joaquim ficou sabendo da oferta de bolsas de pós-graduação em universidades públicas brasileiras. “Uma grande quantidade da literatura que tínhamos em Moçambique vinha de São Paulo e eu queria saber como era esse centro de conhecimento”, explica. Compreender o aumento da violência em Lichinga motivou a ideia de um mestrado. Joaquim entrou em contato com o professor Sérgio Adorno, diretor da FFLCH e coordenador no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP, apresentou seu projeto de pesquisa e obteve uma carta de aceitação da faculdade.
Quando veio para cá, em 2010, nem seus colegas de trabalho acreditavam que Joaquim um dia retornaria. A desconfiança e a tensão em seu casamento foram tão grandes que, quando chegou em São Paulo, ele ficou três meses sem se comunicar com Etelvina. Com o tempo, a situação foi se ajeitando e o Skype reabriu o diálogo entre o casal. Ela já veio visitá-lo duas vezes no Brasil e gostou do que viu.
No ano passado, Joaquim concluiu o mestrado e voltou para Moçambique. Mas ele já previa que sua carreira acadêmica seria feita quase toda aqui. E em março último, retornou ao Brasil, onde permanecerá até 2016 cursando o doutorado. O tema é a urbanização moçambicana, sob orientação da professora Vanderli Custódio, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
O plano de Joaquim é concluir o doutorado e voltar para Moçambique, pensar o país, dar aulas e abrir redes de pesquisa com o Brasil. “A USP vai estar na história da minha vida”, assegura.
Comida angolana no fogão do Crusp
Em um ano, Alexandrino Nunes Mpanzo deixou sua Angola natal, mudou-se para o Brasil, morou em quatro lugares diferentes e teve um filho. Nascido em Luanda em 1985, Alexandrino completou 28 anos em 23 de maio, dois dias antes do Dia da África. Seu pai, formado em Economia na Rússia, sempre quis que os filhos – sete ao todo, apenas uma menina – cursassem boas universidades do exterior.
O idioma foi fundamental para Alexandrino escolher seu destino. Como o inglês era pouco fluente, estabeleceram-se como opções de intercâmbio Portugal e Brasil. Por causa do custo, Alexandrino optou por vir para a América Latina. O Programa de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G), do Ministério da Educação brasileiro, permite que cidadãos de países em desenvolvimento e com os quais o Brasil mantém acordos educacionais e culturais cursem a graduação inteira em universidades brasileiras.
Alexandrino foi aprovado no programa e, em 2009, desembarcou no Brasil. A principal dificuldade aqui foi encontrar moradia. Ele ficou na casa de um angolano estudante de psicologia, em duas repúblicas, em um sobrado perto do Portão 3 da USP e, por fim, no Crusp, onde se encontra até hoje.
Logo em seus primeiros meses no Brasil, Alexandrino conheceu sua futura esposa, Carllile Alegre, de São Tomé e Príncipe, também na África. “Quando menos a gente esperava ela disse que estava grávida. No final de 2009, nasceu o Júnior”, conta. A paternidade o tornou mais responsável, acredita Alexandrino. Ele está no último semestre de jornalismo na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e é repórter estagiário da TV USP.
A saudade da família é inevitável. “Você fica esperando o fim de semana para conversar pela Internet, mas ver a família toda reunida, comendo uma comida típica angolana, aumenta ainda mais a saudade”, afirma.
Para amenizá-la, Alexandrino recorre à cozinha. Seus pratos preferidos são Funge com Calulu – folha de batata doce, quiabo, berinjela, peixe fresco e seco, misturado com azeite de dendê e servido com um pirão de farinha de milho –“Um prato muito bom e nutritivo”, ensina Alexandrino – e Cachupa, uma espécie de feijoada com milho batido.
Júnior, hoje com três anos, ainda não conhece pessoalmente a África nem os familiares de lá, a não ser por fotos e conversas via Skype. Mas Alexandrino pretende viajar no meio do ano para Angola e apresentar formalmente a esposa e filho para sua família.
Como acredita que o mercado de trabalho para jornalistas no Brasil encontra-se saturado, a ideia de Alexandrino é voltar para Angola com a família quando terminar a graduação e trabalhar por lá. “Que um dia um vou fazer mestrado, isso eu sei. Quem sabe não acabo voltando para o Brasil?”