Arquivos da Cúria mostram reflexos da Inquisição no Brasil do século 18

A partir de arquivos da Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo, pesquisadores da FFLCH estão investigando as características da sociedade brasileira colonial.

Paulo Hebmüller / Jornal da USP

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Obra do artista alemão Rugendas: negros formavam boa parte dos réus da Justiça Eclesiástica de São Paulo

A análise de processos há muito esquecidos nos arquivos da Cúria Metropolitana da Arquidiocese de São Paulo pode levar a descobertas sobre costumes, procedimentos legais e uso da língua portuguesa que ajudem a compreender a sociedade brasileira no século 18. Pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP localizaram nesses arquivos 12 processos – abertos entre 1739 e 1771 – que tratam de feitiçaria. “Em boa parte, os réus eram negros, e acreditamos que o que estava em jogo eram ritos de religiões africanas”, diz Helena de Oliveira, doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa e uma das pesquisadoras envolvidas no trabalho.

O material está sob a guarda da Cúria porque os processos corriam na Justiça Eclesiástica, braço do Tribunal do Santo Ofício (a Inquisição) no Brasil, então ainda colônia portuguesa, e tinham algumas peculiaridades. Os responsáveis – promotores e juízes – não eram vinculados à Justiça Comum, mas sacerdotes, integrantes da hierarquia da Igreja Católica. No entanto, em caso de condenação dos processados, fazer valer o cumprimento das penas cabia à Justiça comum.

“Era uma coisa ambígua. Para usar um termo grosseiro, era como se a Justiça Eclesiástica não pudesse ‘sujar as mãos’ com o cumprimento da pena”, especula a doutoranda Nathalia Reis Fernandes, que tem graduação em Letras e em Direito. Dependendo da gravidade do caso, a condenação poderia ser a morte na fogueira. Nathalia ressalva que, no Brasil, o Santo Ofício “não pegou” como nos vizinhos da América Hispânica.

Uma das grandes interrogações que o trabalho já suscitou é se de fato houve execução de algum dos envolvidos nos processos encontrados. A morte na fogueira ainda era comum na Espanha, mas em Portugal o número de vítimas queimadas já estava em declínio. O desfecho dos casos não consta da documentação analisada. Caso a investigação concluísse pela culpa, a questão era enviada a Lisboa, onde se dava a decisão final. Para conhecê-la, seria necessário localizar a demanda em arquivos portugueses – tarefa simples como encontrar uma moeda jogada no oceano de um avião.

Magia para matar

Foto: ReproduçãoA São Paulo antiga: documentos reconstituem valores da sociedade paulista do século 18
Foto: Reprodução
A São Paulo antiga: documentos reconstituem valores da sociedade paulista do século 18

Os processos geralmente eram abertos por denúncias de vizinhos ou conhecidos – podiam ser amigos de amigos, e assim por diante. Na maior parte das vezes, as denúncias se baseavam em ouvir dizer. Num dos casos, de 1749, a escrava Páscoa é acusada de ter matado quatro membros de uma família. De acordo com a descrição, alguém já tinha ouvido falar que a escrava havia assassinado outras cinco pessoas no Rio de Janeiro, de onde veio. “A Páscoa era alguém que fazia simpatias e se declarou inocente. Mas quem a denunciou achava, ou ouviu dizer, que essas práticas faziam mal aos seus donos”, acredita Helena. A ré “usou de magia para matar gente”, define o processo.

Na maioria dos exemplos, os motivos apontados parecem “os mais ‘banais’ possíveis aos olhos de hoje”, salienta Marcelo Módolo, docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH. Num dos casos, dois escravos foram presos porque estavam fazendo uma batucada e ao lado deles havia uma cabra e um casco de cágado. Noutra situação, de 1771, Leonor de Siqueira e sua filha Anna Francisca são acusadas de realizar feitiçarias para transformar Manoel José Barreto, marido de Anna, “em pateta”.

O único exemplo em que as provas vão além dos testemunhos é o do escravo Pascoal José de Moura, de 1765. Pascoal fazia patuás, amuletos que podem conter orações, ervas ou ser associados a imagens de uma entidade protetora. De

acordo com a descrição do texto, os patuás continham “orações contra os inimigos” e de “proteção contra a morte por faca e bacamarte”. Os amuletos foram apreendidos, e o processo traz reproduções das orações e símbolos que eles continham.

A pesquisa tem levantado questões de várias ordens. Em termos da história social, por exemplo, uma das curiosidades é saber por que os processados são na maioria negros e por que há tantas mulheres entre eles. “Quem são essas pessoas processadas? Qual o pensamento social da época que justificava esses processos?”, continua Helena. No que se refere às garantias de ampla defesa, a realidade também era bem diferente. Os acusados eram imediatamente presos e, se entrassem no rol dos culpados, poderiam ser mandados a Portugal. Vale lembrar também que os escravos não tinham personalidade na forma da lei – ou seja, não eram considerados pessoas.

A grande proximidade da Coroa Portuguesa com a religião católica e as relações desta com as manifestações das influências africanas no catolicismo brasileiro também trazem muitas possibilidades de investigação. Nesse campo, por sinal, vale incluir um parêntese para lembrar o que disse em entrevista ao Jornal da USP o pesquisador Vagner Gonçalves da Silva, professor do Departamento de Antropologia da FFLCH, quando do lançamento do livro Intolerância Religiosa (Edusp), do qual é organizador. Para Silva, o catolicismo sempre foi imposto e dominante no Brasil, mas também absorveu fortes influências das culturas e religiões indígenas e africanas.

“Obviamente, a Igreja Católica nunca aceitou práticas que não fossem as suas, mas a bem da verdade ‘por baixo da batina’ ocorriam sincretismos e associações para os quais muitas vezes a Igreja fazia vistas grossas. A Igreja sabia que todo esse catolicismo popular, como a Congada, as festas do Divino Espírito Santo, as Folias de Reis, muitas vezes tinha um pé no terreiro e na herança africana, mas sempre deixou que isso também fizesse parte da constituição dessa vivência, embora a atacasse no discurso oficial”, diz o antropólogo. “Ou seja, sempre houve uma disputa de religiosidades no campo religioso brasileiro. O que é característico, porém, é que as religiões dialogam, mesmo sob o contexto da disputa.”

Caligrafia

Helena de Oliveira e Nathalia Fernandes foram mestrandas de Módolo na FFLCH e seguem sob sua orientação no doutorado. Embora a consulta de documentação antiga seja fundamental para sua pesquisa, os processos envolvendo feitiçaria na Justiça Eclesiástica de São Paulo são uma espécie de “trabalho à parte”, iniciado no começo deste ano e cujo andamento e conclusão vão depender das esquinas do tempo em seu doutorado e atividades profissionais. Ambas já vêm trabalhando com documentação de séculos anteriores para pesquisas diacrônicas (estudo das mudanças de uma língua ao longo da história), e o interesse por esses processos específicos surgiu a partir de uma informação a respeito que Nathalia encontrou na internet.

O mergulho nos arquivos da Cúria foi bastante auxiliado pelo seu diretor, Jair Mongelli Junior. Helena chegou a visitar também o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e a Cúria de outras cidades de São Paulo, como Mogi das Cruzes, mas os únicos processos localizados referentes a feitiçaria foram os 12 do século 18 na Arquidiocese de São Paulo, que então abrangia uma área geográfica bem maior do que hoje.

Outra vertente, que já é objeto de projetos de iniciação científica, é a existência nos arquivos da Justiça Eclesiástica dos chamados processos esponsais. Eram casos nos quais, em geral, um rapaz era processado por uma moça com quem, por alguma razão, havia rompido o compromisso de levá-la ao altar. Num dos processos, foi anexada como prova da relação uma carta do noivo na qual o “m” do “meu amor” com a qual ele começa a missiva é desenhado em forma de coração. Por sua vez, o rapaz poderia alegar em sua defesa ter descoberto, ou ficado sabendo, que a moça não era mais virgem.

Os processos contra a escrava Páscoa (à esquerda) e contra o também escravo Pascoal José de Moura (no centro e à direita): denúncias de vizinhos baseadas em
Os processos contra a escrava Páscoa (à esquerda) e contra o também escravo Pascoal José de Moura (no centro e à direita): denúncias de vizinhos baseadas em “ouvir dizer”

A equipe tem trabalhado na transcrição dos documentos, uma tarefa bastante dificultada pela caligrafia da época, muito distinta da atual, e pelo estado de conservação das páginas, em que alguns trechos foram corroídos por traças ou pela ação do tempo. A caligrafia é diferente daquela dos processos da Justiça comum, em que os escrivães tinham essa tarefa como ofício. Num contexto de pouquíssimas pessoas letradas, no caso da Igreja a escrita dos documentos cabia a integrantes do clero que exerciam as funções de juiz, promotor e escrivão eclesiásticos, e eles talvez não escrevessem com muita regularidade. “O escrivão judicial tem uma caligrafia bem mais legível”, atesta Nathalia. Outra dificuldade é a existência de palavras que caíram em desuso ou que tenham sofrido mudanças semânticas ao longo do tempo. Nesse caso, para estabelecer seu significado à época, é preciso recorrer a dicionários especializados.

A documentação também é fonte das doutorandas por registrar variações na grafia das palavras. “Escrivão”, por exemplo, podia aparecer como “escrivam”. “Os manuais, os livros e as gramáticas existiam, mas nem todos mencionam ou especificam como ou quando utilizar determinado acento”, comenta Helena. “É importante destacar que não havia uma difusão do ensino e de obras editoriais como atualmente”, completa o professor Marcelo Módolo. “Meia dúzia de pessoas tinham uma gramática em casa e ela produzia algum regramento, mas não com a firmeza de uma política educacional linguística, como temos hoje.”

A riqueza dessa documentação inédita será explorada de diversas formas. Um dos frutos que o trabalho deve gerar é a publicação em livro da íntegra dos processos numa edição semidiplomática – ou seja, que conserve as características formais de morfologia, sintaxe, ortografia etc. do original. “A ideia é que possamos esgotar esse material linguisticamente e recuperar dele tudo o que pudermos em termos de fatos sintáticos do português do século 18”, explica Módolo. A edição também será fonte para gerar estudos sociológicos, históricos, religiosos e de outros campos, ajudando a jogar luz sobre um período bastante obscuro de nossa história.

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