A cidade e o comércio não podem nunca ser separados, assegura a professora Heliana Comin Vargas, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. Para a especialista, porém, a academia ainda é pouco presente na análise desta interação. Heliana reconhece que o comércio sempre é visto “ainda, como sendo uma área de mercado” o que o separa, portanto, do estudo das cidades.
É para mudar a forma como nos relacionamos com este tema do cotidiano – afinal, quem não é consumidor hoje? – que o Laboratório de Comércio e Cidades (LabCom) da FAU se dedica ao estudo de diversas formas em que se dá esta interação. “Quando se fala em comércio, na verdade sempre se pensa em shopping center”, assume, ressaltando que isso é um grande equívoco: “comércio é muito mais que isso, ele é o nascimento das cidades”.
Heliana explica a afirmação lembrando que a maioria das cidades do mundo surgiram por meio do comércio, inclusive São Paulo, pois é a partir dele que se garantiu o fluxo de pessoas. Na região central, por exemplo, há o Mercado Municipal, próximo ao rio Tamanduateí, o que favorecia o abastecimento e a passagem de pessoas. A partir daí a cidade recebeu hospedarias para os comerciantes e tropeiros que formaram um núcleo urbano. “Isso vale para o mundo inteiro”, explica a especialista. “O comércio é o embrião das cidades, comércio e cidade têm uma relação de origem”, diz.
O comércio é o
embrião das cidades.
Criado em 2000, o LabCom tem como objetivo fortalecer e aprofundar estudos na área, que discute as relações entre a atividade de comércio e serviços varejistas e a cidade. A professora esclarece que os trabalhos e pesquisas desenvolvidos no laboratório visam fornecer insumos para a elaboração de políticas públicas de controle e indução do desenvolvimento urbano. “Tenho me interessado por esse tema desde a minha graduação”, conta Heliane, que trilhou caminho parecido no mestrado e também no doutorado. A pesquisadora, entretanto, não limita o escopo do laboratório só para comércio e serviços. “Ampliei [a área de pesquisa] para o setor terciário, que inclui o turismo e outras atividades de lazer”, acrescenta.
“O que você imaginar de comércio, estou interessada em estudar. Temos trabalhos com temas que vão do comércio ambulante até shopping center”, cita Heliana, comprovando a pluralidade do LabCom.
Turismo e comércio
A pesquisadora detalha como, em paralelo ao estudo do comércio, surgiu o interesse de analisar, a partir do desenvolvimento do setor, o campo do turismo urbano. Isso por que, conta Heliana, o turismo se desenvolve a partir de uma série de atividades rentáveis, inclusive o turismo de compras. “No turismo, a pesquisa é bem focada nas políticas públicas”. Ela cita como exemplo uma pesquisa que avaliou a ocupação dos litorais brasileiros pelos resorts, grandes áreas segregadas que se utilizam de investimentos estrangeiros.
Antes mesmo de se pensar os grandes eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas, o laboratório analisou o turismo urbano a partir da perspectiva de grandes projetos. Em São Paulo, foi estudada a evolução da cidade com projetos urbanísticos – algo pouco estudado pois a metrópole nunca foi vista como uma cidade turística, reconhece Heliana. Parque do Ibirapuera, Anhembi e outras construções icônicas não foram pensadas para o turista em si, mas para a própria cidade, o que contribuiu para o desenvolvimento do espaço e a preparação da cidade para o turismo urbano – um movimento inverso, reconhece.
Os eventos de rua são também estudados pelo LabCom. A dinâmica de eventos como Parada Gay, Reveillon na Avenida Paulista e Corrida de São Silvestre e seu impacto na cidade trazem questionamentos de como ela deve se preparar. “Sempre com o rebatimento no território”, garante a professora. “O que quer dizer que analisamos a atividade econômica, seja o turismo ou comércio de serviços, e verificamos como ele se rebate no território e o impacto que tem na qualidade de vida das pessoas”. Isso sem deixar de lado a arquitetura, que estuda a construção de edificações icônicas na cidade que valorizam o espaço para os investimentos . “É o consumo do lugar”, explica Heliana.
Feiras de rua, vitrines de shopping
Inseridas na cultura nacional, as feiras livres fazem parte do imaginário. Só em São Paulo, segundo levantamento da prefeitura, são 871 feiras espalhadas pelos dias da semana. No laboratório busca-se entender porque as feiras existem, e como elas se modificam com o passar dos anos. Uma curiosidade apresentada por Heliana é a de que hoje em dia, o carro chefe das feiras é o pastel e não mais os produtos hortifrutigranjeiros. “Isso é a partir da concorrência de outros estabelecimentos e, principalmente, da mudança do comportamento das pessoas”. A professora explica que com a inserção da mulher no mercado de trabalho, a feira se torna um espaço para os empregados domésticos ou para os idosos que ainda valorizam a sociabilização.
“Tivemos um trabalho muito interessante sobre shopping centers”, conta Heliana, citando uma tese que relata a mudança dos shoppings desde o início, como um centro de abastecimento, e sua participação no mercado imobiliário até se tornar, mais recentemente, um produto de consumo como qualquer outro.
“Hoje um shopping é construído e todo mundo frequenta, mas se se constrói um outro que é um pouco diferente, aquele tem que se modificar para não ficar obsoleto”, analisa. “É como se fosse alguma coisa descartável, como a gente faz com os produtos de consumo”. Quando não há mais uma função definida para o espaço, se gera um esvaziamento e abandono dos shoppings, mas as estruturas físicas são mantidas e acabam por se deteriorar – este fenômeno acontece nos Estados Unidos, hoje, mas a pesquisadora afirma que não chegamos a esta fase. Entretanto a professora prevê que “quando a economia baixar, será possível ver alguns, que já estão com alguma dificuldade, serem deixados de lado”.
Colóquio internacional
A cada dois anos o laboratório organiza o Colóquio Internacional de Comércio e Cidade (CinCci), e em 2015 serão completados dez anos desde a primeira edição do evento. O objetivo do encontro é estimular a troca de ideias sobre comércio e serviços enquanto atividade econômica e social e o seu rebatimento no território, na imagem da cidade e na paisagem urbana, bem como sobre seu papel na dinâmica urbana e regional e na produção arquitetônica.
“Sempre trazemos professores estrangeiros para as palestras”, diz a professora, ressalvando que eles não são somente – e nem em maioria – arquitetos, mas também de geógrafos a administradores.