Regulação de conflitos entre Estados e credores não possui normas internacionais disciplinadoras uniformes
Para adquirir imóveis, eletrodomésticos e outras necessidades, muitas pessoas recorrem a empréstimos de bancos e instituições financeiras. O mesmo ocorre com governos para financiar parte dos seus gastos e realizar a gestão financeira. Os empréstimos são feitos pela emissão de títulos públicos ou pela assinatura de contratos firmados com instituições, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), outros governos, agências governamentais e bancos privados.
Esses organismos e os compradores dos títulos se tornam credores da dívida pública, ou seja, são credores dos empréstimos feitos pelos governos. Se o pagamento e recebimento forem na moeda local do país, a dívida costuma ser considerada interna; quando os fluxos são em moedas estrangeiras para uma dívida emitida no exterior, a dívida é externa.
Assim como as pessoas, alguns governos enfrentam dificuldades para o pagamento dos empréstimos e seus juros e por isso tentam renegociar as condições do financiamento com os credores. Mas alguns deles nem sempre as aceitam e recorrem aos tribunais para o cumprimento do acordo. O grande problema é que são acionados diversos tribunais nacionais de várias ordens e locais.
No âmbito internacional, a regulação de conflitos entre países e credores em casos de renegociação da dívida pública carece de regimes jurídicos disciplinadores homogêneos, segundo pesquisa do advogado Gabriel Lochagin. Ele é autor da tese de doutorado Elementos Jurídicos da Reestruturação Internacional da Dívida Pública, desenvolvida com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e apresentada em março na Faculdade de Direito (FD) da USP, sob orientação do professor José Maurício Conti.
Se um tribunal determinar que os credores, que a ele recorreram, sejam integralmente pagos nas condições iniciais, não haveria incentivos para outros credores aceitarem as propostas de reestruturação da dívida de qualquer governo. “É como se fosse um tipo de incentivo para o credor não negociar, e um problema para o governo devedor que terá mais dificuldade e mais custos para renegociar as dívidas”, conta o advogado.
De acordo com Lochagin, os principais sistemas para negociação judicial são os tribunais nacionais, quando um credor recorre ao direito de um país para resolver o problema; e as cortes arbitrais internacionais, formadas especialmente para o julgamento de conflitos internacionais.
“Geralmente, os contratos financeiros são disciplinados por dois direitos internos: o norte-americano ou o inglês. Os contratos trazem cláusulas de que as disputas serão resolvidas em um desses tribunais. Mas existem várias instâncias de renegociação, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), e entidades informais”.
Regimes uniformes
Entretanto, há um movimento internacional para aperfeiçoar os sistemas de disputas entre credores e devedores da dívida pública de qualquer Estado (conjunto de instituições públicas que administra um território), eliminando a diversidade de caminhos jurídicos.
A pesquisa de doutorado detalha as principais iniciativas. Entre elas estão a formação de uma corte falimentar e uma nova instituição, ambas internacionais. Em 2001, o FMI propôs um sistema de solução de controvérsias da negociação da dívida pública baseado no direito falimentar, ou seja, no sistema jurídico de falências que cada Estado aplica no seu âmbito interno. No caso, o modelo adotado seria o código de falências dos Estados Unidos.
“A proposta foi rejeitada pela maioria dos governos por ter conferido ao próprio FMI o poder de solução. mas o fundo não é uma instância neutra e independente, já que é um credor nesta área”, disse Lochagin.
Outra preocupação era que os calotes dos pagamentos da dívida se tornassem mais frequentes com a existência de um procedimento internacional para resolver as disputas entre os Estados e os credores. Segundo o advogado, “essa proposta não foi rejeitada apenas pelos países desenvolvidos, o Brasil também tem uma postura contrária; o temor é que o crédito internacional, talvez, fique mais caro e diminua o dinheiro disponível para os governos”.
Lochagin afirma ainda que há outras propostas de regulação das disputas jurídicas sobre a dívida pública consideradas mais simples. São mecanismos próprios do mercado com a inclusão de Cláusulas de Ações Coletivas, as CACs.
“Elas preveem que, se a maioria dos credores estiver de acordo com a renegociação, os outros credores ficam proibidos de procurar outros meios de resolver a disputa. Isso não consta em uma norma de abrangência global, mas está no contrato, vale para aquela relação do Estado e classe de credores específicos. Essa é a proposta que tende a ser mais implementada”.
Vários países estão adotando as CACs, principalmente os da Europa e a Argentina. Segundo o advogado, praticamente todos os títulos públicos emitidos por nações europeias, depois de 2012, passaram a incluir esse tipo de cláusula.
No entanto, ele acredita que essa ação é muito limitada e ainda falta disciplinar as divergências sobre a dívida pública na área jurídica, não apenas em soluções econômicas e políticas.
“[As CACs] não é uma proposta de resolução das crises da dívida pública, com procedimentos. Mas se destina a problemas de coordenação, ou seja, quando vários credores buscam soluções diversas e criam um grande cenário de incerteza; ao menos com as cláusulas, se consegue limitar essa corrida às cortes em relação aos títulos públicos”.
Hérika Dias / Agência USP de Notícias
Mais informações: email gabriellochagin@gmail.com, com Gabriel Lochagin