Muito além da música, o termo sonologia envolve disciplinas, linguagens e campos de investigação que têm o som como elemento central. Como a nossa escuta se modifica com o tempo? Por que escutamos determinados tipos de música e não outros? De que formas pode ser explorada a relação entre som e imagem? Essas são algumas das questões trabalhadas pelo Núcleo de Pesquisas em Sonologia, o NuSom. Sediado na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, o núcleo reúne pesquisadores das áreas de música, multimídia, artes visuais, engenharia e computação, e propõe a integração da reflexão teórica com a criação artística.
Um dos projetos desenvolvidos pelo NuSom, e que reflete de forma clara seu caráter experimental, é o NetConcert. São concertos que envolvem a performance em rede de pessoas em lugares diferentes através da internet. É preciso trabalhar a parte técnica, com uma infraestrutura adequada à transmissão de áudio, vídeo e dados, e também a questão criativa. “Não é só pegar uma música que já existe e tocar. Os compositores do grupo criam peças específicas, que aproveitam, por exemplo, a questão dos atrasos – em vez de um defeito, as irregularidades e possíveis atrasos da transmissão são aproveitados”, conta o professor Fernando Iazzetta, coordenador do NuSom.
Para viabilizar a interação desejada, foi desenvolvido um software para gerenciar as informações, sob orientação do professor e pesquisador do NuSom, Marcelo Queiroz, do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP. O estudo originou uma tese de doutorado e um programa que simplifica a conexão de recursos musicais e integra diferentes sistemas – formatos e sistemas operacionais, por exemplo.
Um dos NetConcerts, realizado em 2011, conectou as cidades de São Paulo e Belfast, em uma parceria com a Queen’s University of Belfast, na Irlanda do Norte. Nos locais onde, simultaneamente, acontecia a apresentação, um dos telões exibia a imagem dos intérpretes remotos e um outro mostrava imagens que estimulavam a interação entre eles: algumas das peças eram acompanhadas de partituras gráficas, ou seja, representações visuais que não seguem a notação musical habitual, e devem ser interpretadas pelos músicos. Tudo isso também foi transmitido via internet por um canal de vídeo. Esta experiência, e outros NetConcerts realizados pelo núcleo, fundamentaram uma das teses de doutorado orientada por Iazzetta, além de vários artigos científicos envolvendo a questão da performance musical colaborativa com mediação tecnológica.
Arte na academia
Trata-se de uma iniciativa ousada, em especial porque a tradição do departamento é a música orquestral – o núcleo já propôs, inclusive, uma habilitação em sonologia na graduação em Música na ECA, que trabalhasse características mais técnicas, envolvendo noções de programação, eletrônica e multimídia. Enquanto a proposta não se concretiza, o NuSom recebe alunos interessados em linguagens híbridas, que não têm um lugar bem definido, mas que encontram abertura nas propostas do grupo.
O NuSom é um dos Núcleos de Apoio à Pesquisa (NAPs) da USP e embora tenha se estabelecido em 2012, o trabalho do grupo é realizado há mais de dez anos. O coordenador no núcleo, professor Fernando Iazzetta, afirma que é um desafio no campo das artes a questão da produção acadêmica – como lidar com os métodos tradicionais de avaliação quando os resultados de pesquisa têm, frequentemente, caráter artístico? O grupo, no entanto, tem conseguido trabalhar de forma bem sucedida essas questões em seus projetos. Prova disso é o espetáculo Transparências, apresentado em 2013 em cinco cidades da Europa com financiamento da Fapesp – ter um órgão de fomento importante apoiando uma turnê de músicos ao exterior sinaliza uma nova postura em relação ao tema.
São trabalhos que, fora do ambiente acadêmico, seria impossível realizar, pois seria muito caro e não têm apelo comercial.
“São trabalhos que, fora do ambiente acadêmico, seria impossível realizar, pois seria muito caro e não têm apelo comercial”, afirma Iazzetta. Transparências mistura técnicas de improvisação, aspectos de criação coletiva e desenvolvimentos técnicos. As cenas que compõem o espetáculo incluem uma mesa, visível ao público, onde uma das “performers” manipulava objetos e criava cenas com as mãos. Capturados por uma câmera, esses movimentos provocavam variações no som e nas imagens exibidas num telão. “Há uma série de processos que a gente faz que deixam uma situação dúbia entre o que é real e o que é virtual”, comenta o coordenador do NuSom. Por vezes, a imagem exibida era diferente daquela que o público presenciava, por exemplo.
“Há a parte criativa e a parte tecnológica – captura, decodificação e processamento de imagem, transmissão de informação via rede – e tudo isso é feito coletivamente. Este é um exemplo de um produto que é artístico, mas que vem de um processo de produção científica”, afirma. Um dos questionamentos que pode ser feito a partir de um projeto como esse envolve uma característica muito forte da arte: a ideia de autor, autoria e obra. No caso, não é possível dizer quem fez e nem repetir o espetáculo de uma mesma forma.
Produção e reprodução
As apresentações do NuSom, em geral, são pensadas para ser assim mesmo: reproduzidas uma vez só. É o caso da série ¿Música?, que busca instigar a reflexão e questionamento sobre a produção musical atual – daí as duas interrogações que compõem o nome da série. Temáticas, as apresentações já aconteceram nas próprias dependências do departamento, mas também em ambientes externos. Com o tema “Partituras verbais”, o NuSom já realizou o ¿Música? ocupando vários cômodos de uma casa, em que textos dirigiam a ação dos músicos. Uma das partituras verbais executada no evento, o nono da série, é de autoria do compositor Hugh Shrapnel. “Houdini Rite” faz referência ao ilusionista homônimo, e pede aos intérpretes que toquem com as mãos amarradas. E para o NuSom, “tocar”, nem sempre se refere a instrumentos comuns: podem ser utensílios de cozinha, pedras ou o som produzido por ações como fazer uma salada.
Para o NuSom, “tocar”, nem sempre se refere a instrumentos comuns: podem ser utensílios de cozinha, pedras ou o som produzido por ações como fazer uma salada.
Já foram realizadas dez performances do ¿Música?, cada um um evento único. O grupo procura registrar todas elas, mas este é ainda um ponto sensível do processo, pois é difícil definir o que e como registrar com qualidade as ações que compõem cada uma das apresentações.
Em um caminho diferente, mas também com forte veia experimental, o grupo planeja lançar um CD neste ano – embora as faixas possam ser ouvidas mais de uma vez, como canções comuns, a diferença é que as peças serão criadas especificamente para a mídia CD, impossíveis de reproduzir de outro modo, como em uma apresentação ao vivo. “Os membros podem usar partituras gráficas, com desenhos, linhas, figuras, fazer uma gravação, e então um outro grupo as manipula para produzir uma peça a partir do material”, exemplifica o coordenador do núcleo.
Mais informações: site http://www.eca.usp.br/nusom