Os conflitos decorrentes da atribuição de significados diferentes ao patrimônio histórico pela população dos locais tombados e pelos técnicos são analisados em pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP. A partir do caso da cidade de Lençóis (Bahia), a arquiteta e pesquisadora Liziane Mangili mostra a divergência entre a visão do patrimônio apenas como o conjunto de edificações, e representações que incluem manifestações culturais e paisagens naturais da região. A tese foi orientada pelo professor Hugo Segawa, da FAU, diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC).
“A pesquisa surgiu de uma necessidade pessoal, após um ano de trabalho à frente do Escritório Técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na cidade de Lençóis, na Chapada Diamantina”, conta a pesquisadora. “Percebi que os valores que nós, técnicos, atribuíamos ao patrimônio não eram os mesmos atribuídos pelos moradores, assim como os bens aos quais dávamos maior importância, não eram os mais importantes para a memória dos grupos sociais”
O tombamento de Lençóis pelo Iphan aconteceu em dezembro de 1973. A cidade foi o primeiro conjunto tombado cuja iniciativa partiu da população. “A cidade se formou a partir da descoberta de diamantes na região da Chapada Diamantina, em 1844, e passou por sucessivas crises, seja pela queda do preço de diamantes, pela escassez da pedra posteriormente, ou pelas secas”, relata Liziane. “Até então, a prioridade no tombamento era para a arquitetura colonial. Nisso, o caso de Lençóis também ganha destaque, pois foi o primeiro conjunto tombado de arquitetura da segunda metade do século 19, isto é, de arquitetura eclética”.
Na proposta de tombamento elaborada pelo grupo de moradores, foram listados bens de diversas naturezas: tanto patrimônio edificado quanto natural, tanto material quanto imaterial. “O grupo atribuiu valores a saberes e ofícios, como o garimpo e a arte da lapidação de diamantes, a uma manifestação religiosa, o Jarê, dissidência do candomblé típico da região das Lavras Diamantinas, e também a paisagens, como cachoeiras, grutas e serras”, ressalta a pesquisadora. “Também nesse aspecto o grupo foi pioneiro, pois o reconhecimento de bens de natureza imaterial só viria a acontecer e a ter legislação específica no Brasil trinta anos após essa proposta”.
Anseios locais
No entanto, os técnicos do Iphan que analisaram o processo reconheceram apenas os bens arquitetônicos, ou seja, o conjunto edificado. “Isso era prática comum na época, mas a pesquisa revela que todos os programas de preservação que tiveram lugar posteriormente em Lençóis, como o Programa de Cidades Históricas (PCH), no final da década de 1970 e início de 1980, e o Programa Monumenta, de 2001 a 2011, também não reconheceram os anseios locais, aquilo que a população reivindicava como patrimônio”, aponta Liziane.
Na década de 1980, o governo do Estado da Bahia realizou uma pesquisa de mercado internacional e descobriu um nicho de mercado voltado para o turismo de natureza e o ecoturismo, para o qual a Chapada Diamantina se adequava perfeitamente, ainda mais por conter um Parque Nacional, criado em 1985. “Iniciou-se, então, uma forte campanha de marketing de divulgação da Chapada Diamantina como um “paraíso ecoturístico”, associando a ela a ideia de paisagens mágicas, de natureza selvagem, intocada. A mídia impressa e televisiva contribuiu para a divulgação dessa imagem”, diz a pesquisadora. “Com isso, aquela paisagem cultural, produzida pelo garimpo, passa a ser divulgada e vista exclusivamente como paisagem natural”
De acordo com Liziane, a cidade de Lençóis, para a qual se pretendia um turismo de cunho cultural, que valorizasse a cultura garimpeira, passa a ser divulgada exclusivamente como a entrada para o Parque Nacional da Chapada Diamantina, e não como um destino histórico, como espaço de fruição, de trocas e interações entre turistas e moradores. “Na cidade, não há grupos sociais fortemente estruturados, mas há um grande potencial de articulação e formação de grupos para defesa de seus interesses, quando algo é colocado em risco”, observa.
Um exemplo refere-se à implantação da segunda etapa da obra de reforma de logradouros públicos pelo programa Monumenta, em 2010. Com o projeto finalizado e pronto para contratar a obra, o poder público convocou uma audiência para a apresentação do projeto à comunidade. “Muita gente discordou do projeto. Dois grupos se formaram: o primeiro considerava um absurdo, pois pretendia remover as pedras do calçamento do centro histórico inteiro, além de inserir novos materiais e iluminação diferente dos tradicionais lampiões da cidade”, diz a pesquisadora. “O segundo achava que as obras deveriam acontecer, pois gerariam empregos na cidade”. A articulação do primeiro grupo conseguiu que a obra não fosse realizada.
Liziane ressalta que a população não vê o Iphan como um órgão parceiro para cuidar ou proteger as manifestações da cultura imaterial. “Ele é visto como um órgão punitivo e fiscalizador, encarregado de preservar ‘os casarões do centro histórico’, ou seja, apenas o patrimônio edificado”, afirma. “Nesse sentido, não há tentativas de busca por espaços de participação junto ao Iphan”.
Júlio Bernardes/ Agência USP de Notícias
Mais informações: email limangili@hotmail.com, com Liziane Mangili